Pérolas Transatlânticas
Contornos etéreos e semblantes sublim… – Cut the bullshit. Outras Lembranças, Outros Enredos traz a Lisboa uma exposição com uma das maiores coleções de arte do país. Um dos mais crus e sólidos exemplos de uma das melhores reuniões de obras de arte contemporânea neste ano de 2022. Patente até o dia 18 de dezembro na Cordoaria Nacional.
Num ano em que alguns dos maiores eventos de arte contemporânea decorreram na capital portuguesa, como a ARCOLisboa e a JUSTLX. Além de imensas exposições antológicas de artistas consagrados como Julião Sarmento, Tony Conrad e Ai Wei Wei, todos sucessos de público e crítica. Uma das melhores surpresas, de facto, ficaram para o final.
Com contornos de uma Bienal. Tanto pela quantidade de obras que a exposição abarca, quanto pela sua localização privilegiada. O percurso expositivo de dimensões e curadoria esplêndida, exibe o que há de melhor da Coleção Teixeira de Freitas.
A extensa Coleção, que começou a ser estabelecida em 2002 por Luiz Augusto Teixeira de Freitas, advogado brasileiro radicado em Portugal, apresenta um caráter singular pela sua coerência e solidez. Presumivelmente, as coleções de arte refletem o gosto e inclinações críticas do seu proprietário. Facto é que Teixeira de Freitas, inserido no cenário artístico há mais de quinze anos, revelou em entrevista a Stefano Pirovano em 2017 para o portal CFA, que a sua coleção, a princípio, não tinha uma linha definida. No entanto, tudo mudou quando foi apresentado a Adriano Pedrosa, (diretor artístico do MASP desde 2014) que o aconselhou e colaborou ao seu lado na conceção da coleção. Apesar de seguir uma linhagem institucional no começo, a coleção foi se transformando também de maneira intuitiva a partir de uma estratégia específica traçada pelos dois. Como uma edificação que se concentra nos artistas da geração de 60-70, ou um bocado mais novos. Sem, entretanto, obedecerem a um limite geográfico, o que nas palavras do colecionador representa um desejo de “manter as portas abertas”[1].
Assim, edificou-se uma coleção baseada na temática da arquitetura, que explora as diversas perspetivas críticas da geopolítica internacional delineada nos últimos 200 anos. Fração temporal que também demarca a comemoração da Independência do Brasil e é acaso expositivo de Outras Lembranças, Outros Enredos. Que, a convite do Ministério dos Negócios Estrangeiros e do Instituto Camões, exibem-se mais de 200 obras em cinco módulos através da Cordoaria Nacional.
Bernardo Mosqueira e Luiza Teixeira de Freitas, que assinam a curadoria da exposição, exibem através do edifício da antiga Cordoaria, cinco leituras transversais que se sobrepõem a identidades nacionais num esforço em elevar a ‘intimidade dos quatro continentes’. ‘Outras Lembranças, Outros Enredos’, o primeiro núcleo, inaugura a exposição com uma sequência de obras notórias sobre as relações entre o passado e o presente para erguerem-se outros futuros. Aliança (2012) de Ernesto Neto, o primeiro impacto da exposição alude ao antigo passado do edifício, numa conversa com os preciosos excedentes de Desenhos (2000-2005) de Marcius Galan, que submerge o espectador numa síntese sobre o tempo.
É de facto uma grande emoção deparar-se com Rio Fundo (2004) de Marepe pela primeira vez. A obra, impõe-se na centralidade do infinito corredor longitudinal como um ícone das tantas vidas do Brasil, em especial as do Nordeste. Que dilui a passagem do tempo e torna-nos um pequeno grão na grandiosidade do conjunto dos Cotidianos. ‘Os Atlânticos: Tramas, Distâncias, Abismos’ confere continuidade ao percurso expositivo enquanto o segundo módulo. Ao justapor em diferentes cosmogonias as diversidades poéticas, que permeiam os imaginários dos povos que partilham as extremidades do Oceano Atlântico. Apesar da atenção imediata que a obra Desenho (15) (1957) de Lygia Pape captura do espectador para a parede onde assenta, uma bela surpresa esconde-se na porção oposta. Trata-se da conversa entre Every Gravedigger in Lisbon (2006) de João Onofre, Autumn in Lisbon(2004) e Sem título (Lisbon Ephemera) (2009) de Matt Mullican, que faz rir a princípio. Quando o gozo sobre o macabro se cessa, uma lágrima brota aos olhos pela multiplicidade de significantes, assente num certo saudosismo particular à cultura portuguesa.
Damián Ortega, por outro lado, não chega devagar e constrói os seus sentidos sobre a introspeção do espectador como na conversa anterior. Muito pelo contrário, Spiral of Violence (2005) é um soco na boca do estômago. Ou ao menos na minha, que passei a infância numa cidade como o Rio de Janeiro.
‘ruínaconstrução’ é o terceiro módulo e no sentido da lógica, o mais central de todos os cinco. A partir da base da coleção, que versa sobre as edificações e as suas adjacências, ‘ruínaconstrução’ congrega num estilo de gramática germânica a comunhão conceitual de construir e desconstruir. Coluna de Colombo (2005) de João Maria e Pedro Paiva Gusmão põe-se em paralelo com a Vitória de Samotracia (1962) de Yves Klein, num sentido único sobre as edificações do passado e a colonialidade.
Emily Jacir e Paolo Icaro ocupam um corredor efémero na exposição. Com as suas obras Where We Come From, detail (Faiez) (2002-2003) e em Seven, Catena (1968) respetivamente, constrói-se uma crítica à falácia da livre circulação, tão explorada pela Europa Ocidental contemporânea.
‘Estudos sobre a Liberdade’ marca o início do fim da exposição. O quarto e penúltimo módulo, já assente num ambiente diferente do principal corredor da Cordoaria, versa numa abordagem pedagógica e construtiva sobre os processos de recusa, revolta, luta e ressurreição, característicos ao tema. Como se resiste a servidão? Ganha-se ou toma-se a liberdade? Estas são algumas das perguntas que se projetam nesta fração da exposição. Jonathas de Andrade e a sua instalação/constelação mancha duas paredes com a obra Ressaca Tropical (2009), Memory – Books Without Name (1990) de Geta Bratescu ocupam dois lados do mesmo palácio da memória.
O maior destaque que confiro a esta exposição assenta na sala seguinte. Tive de conter as lágrimas quando pousei os olhos sobre Man does not live on bread alone (2013) de Taysir Batniji. Um painel de sabão, que alude a tradicional confeção dos sabonetes de Aleppo, carrega uma gravação da 13º emenda da constituição estadunidense: “Everyone has the right to freedom of movement and residence within the borders of each state(…)”
Conter as lágrimas produzidas pela obra de Batniji não acabou por resultar, pois na mesma sala instala-se Plan de Producción de Sueños para empresas estatales en Cuba (2010/2012) de Adrian Melis, e finalmente o excedente das minhas emoções acabaram por correr livremente o meu rosto.
Por fim, mas de todo não menos importante, o quinto módulo ‘Poesia e Fábula: Linguagem e Apoteose’ que investiga a língua e a linguagem como forma de invenção de mundos. Neste momento, tocava Construção de Chico Buarque nos meus auriculares, e pude constatar que Sem título (peso de plomo) (es eso todo lo que hay en la vida) (2008) de Rirkrit Tiravanija e Andrés Sanchez Robayna no livro Variaciones sobre el Vaso de agua (2015) convergem-se no sentido que implicam sobre os copos de água, ou café que nos acompanham no nosso cotidiano.“(…) es nuestro centinela. Se acercamos el oído, casi lo oímos respirar.”[2]. São os nossos companheiros, protetores, e abarcam nas suas extremidades todo um mundo que nos pertence, mesmo que momentaneamente, como a linguagem.
A exposição Outras Lembranças, Outros Enredos traz consigo obras de arte que são na sua síntese sólidas, e que não obedecem à lógica da rapidez de produção do mercado contemporâneo. A Coleção Teixeira de Freitas dilui o nosso tempo de leitura e diminui o ritmo pelo efémero e passageiro. Apreciar uma exposição destas é uma prenda de fim de ano, tanto pela qualidade do que ali se apresenta individualmente, quanto pelo percurso curatorial desenvolvido no edifício da Cordoaria.
É uma coleção de pérolas transatlânticas, oferecidas em forma de prenda de final de ano com entrada gratuita. Aproveitem.
[1]https://www.conceptualfinearts.com/cfa/2016/05/16/collector-luiz-augusto-teixeira-de-freitas-too-much-art-is-produced-just-to-feed-the-supermarket/
[2] Robayna, A. S. (2015). Variaciones sobre el vaso de agua. Galaxia Gutenberg.