Utopias para Realistas – Outros Antropocenos – O Apocalipse visto da Amazónia
Vivemos num mundo instantâneo, de políticas, promessas e lugares-comuns. No debate entre o que deve e pode ser feito, onde fica o pensamento crítico e a ecologia? O respeito e a empatia? Levar-nos-ão as utopias a outros possíveis?
Pondo em diálogo, artistas, cientistas e escritores, em diferentes espaços da cidade do Porto, a Galeria Energia, que iniciou em outubro a segunda parte da sua programação, aborda, entre outros, a ação ecológica. Inserida no segmento Imaginários,o Auditório Biblioteca Municipal Almeida Garrett recebe, no próximo dia 15 de dezembro pelas 19 horas, a conferência “Outros Antropocenos – o apocalipse visto da Amazónia”[1]. Liderada por Patrícia Vieira – investigadora sénior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e coordenadora do projeto ECO – Animais e Plantas em produções Culturais sobre a Amazónia – a palestra convida a uma reflexão sobre o Antropoceno com base nas cosmovisões dos povos da Bacia Amazónica.
Se a utopia não é sobre impossíveis, mas sobre possíveis existentes ainda não implementados ou ainda não totalmente exequíveis, cabe à nossa imaginação, compreender o presente, empreender a mudança e apontar caminhos e formas de os caminhar. Onde, não só o conhecimento científico é chave, mas também a criação artística e cultural.
Mafalda Ruão – A Patrícia editou o livro The Mind of Plants: Narratives of Vegetal Intelligence, a propósito do qual referiu uma vez em entrevista “A morte das plantas pode ser o nosso esquecimento”. Que cenário é este?
Patrícia Vieira – O que pensam as plantas? Quais os seus desejos e ambições? E como se relacionam com outros seres, incluindo o Homo sapiens? Estas são algumas das perguntas que norteiam The Mind of Plants, composto por um conjunto de textos de autoras/es que vivem e trabalham de forma muito próxima com diferentes plantas. O livro mostra que as plantas são entidades ativas, cujas decisões moldam o mundo ao seu redor e a vida dos seres humanos. Ao matar as plantas, através, por exemplo, do desmatamento desenfreado de áreas florestais antigas, com grande biodiversidade, frequentemente para implantar monoculturas, o ser humano está a destruir-se a si mesmo. O empobrecimento do planeta causado pela ação humana, levará inevitavelmente a um empobrecimento da existência e do pensamento humanos.
MR – Para lá do contexto da crise climática e de biodiversidade, parece existir falta de empatia e pensamento crítico por parte do ser humano. Acredita no lado generoso da natureza humana e na sua capacidade de se relacionar com o outro não humano?
PV – O ser humano só existe em relação, quer entre si, quer com todas as outras entidades do mundo. Contudo, e talvez devido à grande aceleração científico-tecnológica dos últimos séculos, alguns seres humanos começaram a acreditar que podiam dominar outras formas de existência e colocá-las ao seu serviço. Esta atitude pode até funcionar a curto prazo, mas tem-se vindo a revelar, com cada vez maior evidência, que traz consequências negativas para os humanos, desde as mudanças climáticas até à contaminação de águas e solos, tornando certas partes do planeta inabitáveis. É preciso capacitarmo-nos de que a vida existia na terra muito antes do aparecimento da nossa espécie e continuará provavelmente a existir depois do nosso desaparecimento. A vida e o planeta não precisam dos humanos; nós é que precisamos deles.
MR – É possível reescrever estas narrativas que perspetivam a supremacia humana?
PV – É urgente reescrever a narrativa que legitima o domínio humano sobre outros seres. Durante a Idade Média acreditava-se que as entidades que povoam o mundo podiam ser classificadas segundo uma estrutura piramidal – scala naturae – no topo da qual estariam os humanos, epítome da perfeição, seguidos dos animais, das plantas e dos minerais, formas mais inferiores de existência. Sobrevivem ainda muitos resquícios deste modo de encarar plantas e animais. As plantas, por exemplo, são decisivas no planeta: constituem mais de 80% de toda a matéria viva (os seres humanos cerca de 0,01%) e a sua propagação tornou possível o desenvolvimento de todos os seres aeróbicos que habitam a terra, incluindo o Homo sapiens. No entanto, muitos seres humanos continuam a ver as plantas como entidades inertes, passivas e inferiores aos animais, que podem ser manipuladas de acordo com os interesses e necessidades humanas.
O conhecimento científico desempenha uma função importante na transformação das narrativas sobre plantas e animais que circulam no nosso contexto social, mas a criação artística, o cinema, a literatura e até os videojogos têm também um papel fundamental. As artes ajudam-nos a conceber maneiras diferentes de ver o mundo ou, melhor dizendo, outros mundos. A crise ambiental que vivemos é, em muitos aspetos, uma crise de ideias e pensamento, uma incapacidade de imaginar modos alternativos de organização em sociedades multiespécies.
MR – Falando nas artes, a Patrícia dedica-se à ecocrítica, uma corrente que pensa e relaciona o ambiente — e seus agentes humanos e não humanos — com variadas formas de arte e produção cultural. Debruçando-se na realidade portuguesa, onde estamos?
PV – A ecocrítica encontra-se ainda pouco representada nas universidades portuguesas, ainda que encontremos na literatura, no cinema e nas artes em Portugal inúmeras produções culturais que dialogam com o mundo não humano. Se a consciência da degradação ambiental é algo relativamente recente em obras artísticas, a interação com o mundo natural sempre existiu nas artes. O que seria a literatura portuguesa sem a presença do mar, por exemplo? Num livro que coeditei recentemente, Portuguese Literature and the Environment, abordo precisamente essa ligação estreita entre seres humanos e não humanos na literatura portuguesa, desde as cantigas medievais até ao presente, passando por autores como Eça de Queirós, Fernando Pessoa ou Sophia de Mello Breyner Andresen. Espero que o livro seja capaz de aprofundar o conhecimento que a sociedade portuguesa tem do meio ambiente.
MR – Já do lado do Brasil, e porque certamente terá o seu impacto, Lula, como presidente, e Marina Silva, como ministra do ambiente, significam regeneração da Amazónia?
PV – Há uma grande expectativa de que o novo governo consiga travar o desmatamento galopante da Amazónia e faça da proteção ambiental e dos direitos das populações indígenas uma prioridade. Dada a situação política atual, não será fácil. Na verdade, a floresta amazónica começa a dar sinais de savanização, o que poderá, a partir de determinado ponto, tornar-se irreversível e estender-se a toda a região. Isto teria consequências desastrosas não só para os seres não humanos e humanos que habitam a Amazónia, mas também para o equilíbrio do mundo natural no resto do Brasil e da América do sul.
MR – A Amazónia é, precisamente, ponto de partida da conferência que trará ao Porto. Pode introduzir brevemente o tópico?
PV – Ultimamente fala-se muito sobre o Antropoceno, uma era geológica marcada pelo impacto negativo que os seres humanos estão a ter no planeta. Os discursos sobre o Antropoceno evocam o Apocalipse bíblico, ou seja, a noção de que o mundo como o conhecemos está prestes a terminar, e constatamos que as consequências do Antropoceno, tais como mudanças climáticas, desflorestamento, acidificação dos oceanos e extinções em massa, levarão (em algumas partes do mundo, já estão a levar) à chegada dos quatro cavaleiros apocalípticos: conquista, guerra, fome e morte.
Na conferência apresentarei uma versão amazónica do Apocalipse, atentando no facto de que a visão do mundo (ou dos mundos) e, consequentemente, do seu fim, se transforma quando contemplada de uma perspetiva indígena amazónica. Como é que as comunidades que menos contribuíram para o Antropoceno lidam com o Apocalipse e a ideia do fim do mundo? Os povos indígenas da Amazónia, que têm sofrido as consequências do Antropoceno e têm vindo a contemplar, reiteradamente, o fim dos seus mundos na sequência da colonização e ocupação das suas terras ancestrais, podem, nas palavras do intelectual indígena Ailton Krenak, oferecer-nos ideias para adiar o fim do mundo.
MR – E a nível pessoal, de que características e ferramentas dispõe a humanidade que sejam um trunfo para abordar as mudanças climáticas, aquelas que nos podem conduzir ao apocalipse?
PV – A meu ver, as mudanças climáticas são apenas uma parte de um problema maior que se prende com uma questão já mencionada – a noção de que a humanidade é intrinsecamente superior a todas as outras formas de existência do planeta e que, portanto, teria carta branca para dominar e explorar seres não humanos. Esta ideia de que as entidades não humanas são objetos ao serviço das pessoas não existe em todas as sociedades. No pensamento indígena amazónico é dado adquirido que os seres não humanos têm pontos de vistas próprios que frequentemente chocam com as pretensões dos humanos, tornando-se assim necessária uma diplomacia que faça a mediação entre espécies e universos distintos. Os seres humanos conseguem imaginar outros mundos e colocar-se no lugar dos outros. Esta faculdade é potenciada pelas artes, que nos abrem tanto o pensamento como os sentidos para realidades diversas. Cabe a cada pessoa, e às nossas sociedades, aceitarem esse repto da imaginação e conceber uma existência mais igualitária neste planeta que temos a sorte de partilhar com tantos outros seres.
[1] Lotação limitada. Reserva antecipada de bilhete, gratuito, através do e-mail galeriamunicipal@agoraporto.pt.