A Matéria é Soberana de Isabel Cordovil na Uma LuLik__
A violência, para além dela mesma, procura a consciência (a fim de que o prazer que ela atinge seja refletido e, por isso, seja mais intenso e mais decisivo, mais profundo).[1]
A Matéria é Soberana é a exposição individual de Isabel Cordovil na UMA LULIK__, em Lisboa. Com curadoria de David Revés, Isabel apresenta sete peças produzidas em 2022, entre elas esculturas e fotografias que combinam elementos da mitologia ocidental com a poética autobiográfica da artista.
Na primeira sala, duas esculturas acompanhadas de uma aura provocada pela iluminação antecipam tensões sagradas e profanas. Envolto por mitos e histórias, o cinto de castidade surge como símbolo do obscurantismo e opressão medieval. Durante muito tempo o objeto foi exposto em museus como documentação e memória de uma perversa função, que se constatou posteriormente ser uma invenção do Iluminismo para ridicularizar a Idade Média. Magdalene reflete, além de relações de submissão e dominação, em como a história pode ser construída e os mitos se transformarem em mecanismos de controle e violência. Em contraste com o peso da peça e seu significado carregado, Magdalene está suspensa por fios quase invisíveis e parece flutuar sobre sua própria sombra.
A seguir Teresa, formada por dois corpos em um – numa narrativa confessional e um toque acolchoado de Louise Bourgeois – aponta o inverso; a liberdade e a emancipação celebradas pelo órgão cuja única função está no prazer sexual. Suas costuras e sinais aparentes indicam um corpo marcado por violências que se intensificam com a presença do arame e da corda a envolver e amarrar o clitóris, incorporando o erotismo e o fetiche do BDSM e pontuando a zona limítrofe entre prazer e dor.
O diálogo de oposição criado pela relação entre as duas obras traz dualidades que se manifestam na exposição. Envolver-se por algo que fere é uma das suspensas controvérsias no jogo das relações. O brilho atraente de Isobel ao chão – um antigo estojo de guardar revólveres herdado de seu avô revestido em bronze – seduz o espectador para perto. O chão coberto de látex deixa pistas, pegadas que sugerem a presença de outros corpos. O díptico com as radiografias de seus pais em Matter, Mütter, cenas dionisíacas de cálices vazios e uma maçã desfocada sobre a mesa de sua casa em The Decay of Rome (was a long ass afterparty) apresentam conexões íntimas em meio a simbologias religiosas, estruturas instituídas de poder e instrumentos de guerra.
Em Glotte, um saco de boxe suspenso por correntes ao centro da segunda sala, com flechas de ferro que o perfuram por todos os lados traz a imagem de São Sebastião. Na narrativa cristã, São Sebastião foi um soldado da guarda imperial condenado por traição; o santo flechado, divino e venerável. A flecha é também o instrumento de Eros na mitologia grega. A devoção e o mito do amor. As inscrições no capacete de Delilah não deixam dúvidas. Eros e Dionísio encontram-se.
Sistemas ideológicos são ficções, romances[2]. Nossas crenças e desejos se orientam pelas histórias que são contadas conforme os respectivos recortes. Com uns óculos espelhados, a rapunzel motomami traz o conto de princesa do contexto medieval para o contemporâneo contrapondo ilusões e armadilhas na criação de mitos. Em A Matéria é Soberana, Isabel Cordovil reconstrói ficções e revisita iconografias históricas, passando por campos de batalha e lugares obscuros das relações humanas.
A Matéria é Soberana está patente na UMA LULIK__ até 30 de dezembro de 2022.
[1] BATAILLE, Georges. (1987). O Erotismo. Porto Alegre: L&PM. p. 126.
[2] BARTHES, Roland Barthes. (1987). O Prazer do Texto. São Paulo: Perspectiva. p. 46.