O Pulsar do Tempo no Labirinto de Maria José Oliveira
Uma viagem pelos caminhos sinuosos da vida, por percursos imprevisíveis e encontros e prazeres inesperados, que nos conduzem ao interior de nós mesmos. Parece ser por aí que Maria José Oliveira (Lisboa, 1943) nos propõe navegar em Labirinto, exposição que realiza na Rua das Gaivotas 6, em Lisboa, com curadoria de Tânia Geiroto Marcelino e Rita Anuar.
Maria José Oliveira tem vindo a desenvolver, desde o final dos anos 1970, um corpo de trabalho laborioso e plural, cuja metodologia assume um ímpeto quase arqueológico, de procura por aquilo que nos precedeu, por aquilo que traçou o nosso caminho. Daí advém a força germinativa das suas obras, que nos falam de saberes que vêm de longe e de gestos que perduram e se repetem. São organismos vivos onde se manifestam a transformação em potência, os ritmos da natureza e a passagem do tempo, num ato criativo assente na liberdade.
Em Labirinto apresenta um conjunto de obras construídas a partir de materiais diversos, carregados de energias, significados e simbolismos. Obras que, tal como os labirintos, nos seduzem e nos convidam a entrar nelas, invocando a nossa imaginação, levando-nos a atravessar tempos, memórias e histórias que se entrelaçam.
Percorrer o labirinto como quem vagueia pelos corredores serpenteantes da memória. Walter Benjamin, desejando representar graficamente a sua vida, dizia que esse mapa assumiria precisamente a forma de um labirinto[1]. Cada memória funcionaria como ponto de entrada para um espaço onde se cruzam tempos, lugares, pessoas e experiências.
Parece ser a possibilidade desse mapa que encontramos em Labirinto I (2019), onde vemos uma sequência de quatro fotografias, aparentemente iguais, mas nas quais um olhar mais demorado e atento consegue distinguir diferenças subtis. Sobre elas rasgões, rugas, aberturas. A sedimentação de gestos vividos, sugeridos e imaginados. Um mapa que regista a vida no seu desenrolar – cada golpe ferido ao papel um encontro, presenças e ausências, percursos imprevisíveis e constantes retornos. Uma memória escavada e trabalhada entre tempos. O passado, os afetos, os amores e desamores contidos nas linhas das mãos.
Dentro do Labirinto III (1990/2022) o colapso do tempo. Obra composta pela colagem de fragmentos de jornais sobre uma estrutura coberta com barro cru. Um palimpsesto onde se destacam algumas frases e alguns nomes, mas em que o significado original de cada fragmento é descontextualizado, desviado, tornando inacessível. Entre a memória e o esquecimento. A multiplicidade de tempos sugere a experiência de uma temporalidade outra, não-evolutiva e não-sequencial. Tal como a memória, o labirinto interrompe a corrente linear do tempo que se desenrola. Sobre os retalhos de jornais, uma rede quadriculada, feita com galhos de videira. A geometria, a organização, a razão. Uma moldura vazia abre espaço ao futuro, à possibilidade, a novos caminhos e correspondências. No topo uma pequena abertura. Saímos do labirinto e trazemos connosco os vestígios da viagem, os espectros e fantasmas que nos acompanham na transformação do Eu.
Em Labirinto II (2019/2022) vemos a sequência de fotografias pelas quais já tínhamos passado em Labirinto I. Aqui encontramo-las, porém, num estado anterior à sua rasura – o percurso pelo labirinto faz-se de avanços e recuos. Entre a repetição e a diferença, nestas imagens vemos mãos que seguram pares de óculos sem lentes sobre molduras vazias. No seu conjunto revela-se um ser aracnídeo que vai construindo a sua teia – Aracne (1987) também habita a exposição. Segundo Maria José Oliveira, nesta obra procurou representar os caminhos que nos vão sendo impostos ao longo da vida. Caminhos que nos interrompem a continuidade e nos fazem desempenhar papéis nos quais não nos reconhecemos, toldando-nos a liberdade. Sob este cenário entra, pela mão da artista, uma pequena faca que inicia a incisão. São os primeiros gestos, os primeiros passos em direção à saída do labirinto. Urge-nos «Ver que o palácio é dos outros / mas que o labirinto é nosso / Que alimentamos o monstro / com o sangue de nós-próprios»[2]. Só assim seremos viajantes emancipados, que não se deixam circunscrever à submissão e ao pudor. Não existe uma única e invariável direção. É preciso desbravar caminho, construir espaços e tempos onde habitar. Marcar «a vitória do espiritual sobre o material, do eterno sobre o perecível, da inteligência sobre o instinto, do saber sobre a vidência cega»[3].
Chegamos então à Saída para um espaço que se pensa livre (2022). Um espelho colocado em direção à vastidão espacial e temporal. Um espelho onde não conseguimos ver o nosso reflexo, mas onde está colocado um par de óculos que pertenceu à mãe da artista. O que nos leva a questionar: será que a saída do labirinto, o encontro com a liberdade almejada, se dará na origem? Num tempo primordial, o tempo mítico da criação? Percorremos «as ruínas circulares»[4] e encontramo-nos nós mesmos o sonho de um outro, num ciclo sucessivo que se repete.
Os ciclos e a circularidade da vida estão também presentes em Cadeira, escaravelho, planetas (2017). Algumas espécies de escaravelhos criam, a partir dos excrementos de outros animais, uma bola que vão transportando e fazendo crescer com sementes e restos vegetais. Enterram essa bola num sítio seguro, cobrindo-a por vezes com barro, e nela colocam os seus ovos. As pequenas larvas alimentar-se-ão precisamente dessa bola de matéria orgânica. Na referida obra de Maria José Oliveira, vemos, em cima de uma cadeira e sobre uma placa de porcelana branca, um escaravelho que empurra uma forma tubular de argila, que simboliza precisamente o princípio desse longo percurso, no qual se dá a transformação da matéria, onde os ciclos se repetem e a vida se renova. Ouve-se em loop os batimentos do coração humano que marcam o ritmo de uma corrente vital que atravessa os tempos – Empurrar o Mundo (2022). No chão, sete novelos de algodão preto «representam a totalidade do Universo em movimento, o dinamismo total e a plenitude dos tempos.»[5].
Será talvez neste ponto de tensão que se estabelece o Labirinto de Maria José Oliveira. Estamos todos ligados uns aos outros, em ciclos e círculos sem fim. Sonhamo-nos, criamo-nos, e é isso que faz empurrar o mundo. No entanto, teremos que trilhar a nossa própria viagem. A longa caminhada humana, feita de sucessivas encruzilhadas, de obstáculos, encontros e escolhas. Na procura do sentido, o sentido que constantemente nos escapa neste atribulado caminho, atravessa-se a distância que vai da sombra à claridade, na unidade com um tempo longínquo, para chegar ao interior de nós mesmos, ao encontro da verdade, da liberdade.
Labirinto, de Maria José Oliveira, com curadoria de Tânia Geiroto Marcelino e Rita Anuar, está patente na Rua das Gaivotas 6 até 15 de dezembro de 2022.
[1] Benjamin, Walter. (1982). Reflections: Essays, Aphorisms, Autobiographical Writings. New York: Schocken Books. pp. 31-32.
[2] Mourão-Ferreira, David. (2019). “Romance de Cnossos” in Obra Poética [1948-1995]. Lisboa: Assírio & Alvim. p. 442.
[3] Oliveira, Maria José. (2022). Folha de Sala.
[4] Borges, Jorge Luis. (1998). “As Ruínas Circulares” in Ficções. Lisboa: Editorial Teorema, pp. 43-50.
[5] Oliveira, Maria José. (2022). Folha de Sala.