Nobody Nowhere o limbo do futuro nas pinturas de Gabriel Abrantes
No dia 5 de dezembro, Gabriel Abrantes inaugura uma exposição unicamente de pintura na Galeria Francisco Fino em Lisboa. Nobody Nowhere é o nome desta mostra inédita. Apesar de ser maioritariamente conhecido pela sua obra fílmica, a pintura é parte integrante do seu trabalho e não ocupa um lugar menos importante. Foi numa manhã chuvosa de novembro que visitámos o seu atelier em Lisboa. Pinturas de grandes dimensões cobriam a totalidade das paredes. Uma melancolia tão trágica quanto arrebatadora invadiu o nosso corpo.
Fantasmas. Fantasmas pintores, fantasmas com câmaras de 16mm, fantasmas artistas, ocupam vários cenários. Um museu, uma galeria ou o espaço de um atelier. Fantasmas impossibilitados de se movimentar livremente sem o recurso a cadeira de rodas ou a muletas. Todos os espaços se encontram alagados, seja por águas calmas ou turbulentas, e quase todos são iluminados através de um único ponto de luz. Os corpos fantasmagóricos fundem-se com a água que inunda os espaços, desaparecendo. Uma tragédia onde os corpos não são corpos e o espaço não é lugar algum, “Nobody Nowhere”.
Cinema ou pintura, o discurso é comum em ambos os suportes utilizados por Gabriel Abrantes. A história da pintura ou as ideias que dão corpo ao seu trabalho de pintura estão presentes nos seus filmes assim como as suas pinturas adotam a linguagem dos filmes que produz. Amante da História da Arte e da História da Tecnologia, Gabriel Abrantes interessa-se pelo modo como a tecnologia influencia a arte possibilitando revoluções estilísticas ao longo do tempo. A sua obra espelha esse interesse ao recorrer à criação de mundos digitais ou à Inteligência Artificial (IA) como base para as suas pinturas e filmes. O ponto de partida é o programa de animação 3D e efeitos visuais Maya da Autodesk, que utiliza para construir digitalmente imagens dos universos que retrata. Essas imagens são completadas com recurso ao sistema de IA Dall-E que permite a criação de imagens realistas a partir da sua descrição através da linguagem. «Esta abordagem insere-se na tradição da pintura. Quando a mesma se começou a confrontar com a fotografia. Os impressionistas tentaram contrariar o hiper-realismo na pintura. Já pintores mais recentes, como Richter ou Tuymans, utilizam a fotografia como base para o seu trabalho. A minha abordagem é idêntica, mas através do mundo digital» refere Gabriel Abrantes.
Geradas as imagens, utiliza técnicas tradicionais de pintura a óleo, fazendo referência a estilos ou modos de pintar ao longo da história que o inspiram. O contraste entre luz e sombra adivinha uma espécie de iluminação cinematográfica que nos diz procurar captar, remetendo para o trabalho de Georges de La Tour onde os ambientes escuros são iluminados apenas pela chama de uma vela. As águas turbulentas em algumas das telas lembram as paisagens tempestuosas de Caspar Friedrich. E encontramos citações a Miró, Cy Twombly ou Mark Rothko, com a representação de obras suas geradas através de IA.
A ligação entre a animação e o trabalho de Gabriel Abrantes vai ao encontro da rejeição do privilégio da existência humana sobre a existência de objetos ou seres não humanos. O conceito de Object Oriented Onthology ou a ideia de Perspetivismo introduzida pelo antropólogo brasileiro Viveiros de Castro, que afastam o homem do centro, estão presentes em muitas das suas obras. Tomando como exemplo o filme Les Extraordinaires Mésaventures de la Jeune Fille de Pierre (The Extraordinary Misadventures of the Stone Lady) em que uma escultura do Louvre ganha vida e vagueia pelas ruas de Paris ou o vídeo Os Humores Artificiais, em que a personagem principal é um robô voador “Andy Coughman”.
Nesta série de pinturas, os fantasmas personificam o artista como um avatar digital, dissociado do seu corpo, vazio, perdido, incapacitado de se mover. No texto que acompanha a exposição, também ele concebido com recurso a um programa de IA, GPT-3, sob a forma de uma conversa entre o artista e um curador de arte contemporânea gerado digitalmente, lê-se «os fantasmas podem representar ansiedades relacionadas com o papel do artista numa sociedade fraturada, partidária, extremista e ameaçada pela extinção». Gabriel Abrantes confidencia-nos que a figura do fantasma tem origem não apenas na sua paixão pelo trabalho do pintor Philip Guston ou pelos irmãos Fleischer do filme de animação Betty Boop, mas também no livro Lincoln in the Bardo de George Saunders, no qual os fantasmas se encontram num estado de limbo esquecendo-se progressivamente de quem são. «O que me interessa nos fantasmas é também essa ideia de limbo. São personagens que estou a tentar criar que ao mesmo tempo não têm corpo, as imagens que produzem são imagens produzidas por inteligência artificial, o mundo está alagado…por isso, transportam uma noção de limbo do futuro».
O sentido de catástrofe é completo pelo alagamento dos espaços. A alusão à água, elemento composto por milhões de partículas enquanto representação de um sistema complexo adivinha a possibilidade de um futuro trágico intimamente relacionado com as alterações climáticas. Numa das obras um fantasma chega mesmo a derramar um balde de água sobre o seu próprio trabalho. Um gesto que destrói a sua criação, anulando-se, tal como o ser humano está a destruir o seu próprio planeta e a evoluir num sentido em que cria ferramentas que o distanciam do mundo real e incitam à sua própria extinção, tais como a criação de programas que possibilitam a construção de mundos digitais ou a Inteligência Artificial que permite que máquinas ou robôs possuam a capacidade de dar resposta a questões ou tarefas que necessitem do uso da inteligência, até aqui exclusivamente humana.
Apesar de todas estas questões imbuídas de uma carga trágica, complexas e extremamente atuais sugeridas pelas pinturas de Gabriel Abrantes, sentimos uma empatia pelos fantasmas nelas representados, à semelhança da figura de Diamantino no filme Diamantino, que ao mesmo tempo que dá corpo a uma sátira é também um veículo emocional que nos comove e pelo qual sentimos compaixão e ternura. Nobody Nowhere é uma reflexão acerca do lugar da arte e do artista no mundo atual, ou do nosso lugar no mundo atual, contaminado por um mundo digital cada vez mais dominado pela IA. Uma ameaça? Ou uma salvação? Corpos que não são corpos e espaços que não são lugar algum. Uma sátira. Gabriel Abrantes coloca-nos numa espécie de limbo, idêntico ao em que se encontram os fantasmas de Saunders, que materializa a incerteza do futuro e um possível esquecimento de nós próprios. Uma exposição que não abre lugar à indiferença. Sentimos receio, medo, ansiedade, um desanimo perante o mundo em que viemos ao mesmo tempo que um fascínio avassalador.