Um Dó Li Tá: Maria Peixoto Martins e Rita Leitão na Galeria Municipal Vieira da Silva
Quando falamos de brincadeiras de criança, o exercício da memória é inevitável. Brincar é uma forma fundamental de nos relacionarmos com o outro, mas também de auto-compreensão. É o nosso primeiro contacto com a espontaneidade e a imaginação. Brincar poderá ser a primeira forma de expressão artística, onde brinquedos, desenhos e teatros, ganham vida através da imaginação e da projeção do nosso inconsciente.
Na Galeria Municipal Vieira da Silva em Loures, a exposição Um Dó Li Tá, surge no contexto da JOV’ARTE | Bienal Jovem 2021 (concurso lançado a jovens artistas entre os 18 e 35 anos), onde Maria Peixoto Martins e Rita Leitão venceram o 1º prémio com a obra Manual de Instruções (2021). As artistas reúnem-se novamente neste espaço, agora com um projeto de maior dimensão e que promete homenagear as brincadeiras de infância.
A exposição apresenta-se como uma memória coletiva, onde as artistas questionaram amigos e familiares sobre as suas memórias de infância. A informação recolhida foi trabalhada nos mais diversos meios, passando pela pintura, fotografia, vídeo, performance e escultura. Maria Peixoto Martins e Rita Leitão contribuem também para a criação desta memória coletiva com objetos do seu universo pessoal, entre eles fotografias e vídeos caseiros que mostram contextos íntimos e familiares.
Iniciamos o percurso expositivo com a pintura Castelos de areia: um retrato de duas crianças sentadas num escorrega. As pinceladas são imprecisas, e nas cores vibrantes e vivas é o vermelho que domina a composição. O lugar da pintura situa-se entre a captura de um instante e a impressão de uma memória longínqua. Já em Crido Diariu duas páginas de um diário são emolduradas e expostas na parede. Datadas de 2003 e 2004, as páginas são marcadas pela caligrafia infantil e pelos desenhos, são confissões que passam do domínio privado para o público. Numa das páginas, após a revelação de uma série de segredos, percebemos que este é um diário que pertenceu à artista Rita Leitão.
Adiante, vemos Queria ser astronauta, uma instalação composta por três meios diferente que mostra os resultados do questionário que as artistas fizeram a amigos e familiares. Numa primeira parte, vemos uma enorme lista que se desenrola até ao chão com o testemunho de várias pessoas sobre as suas memórias de infância. Lemos, por exemplo, frases como “Imaginava que a despensa era um supermercado e ‘vendia’ alimentos ao meu irmão” ou “Subia o muro do quintal em cuecas e dava gritos à Tarzan.”. Ao lado desta lista, uma televisão mostra um vídeo onde as duas artistas incorporam os testemunhos que anteriormente lemos. Nesta performance, o corpo das artistas encarna memórias que nunca viveram. Memórias que ganham vida através da imaginação, como se Maria Peixoto Martins e Rita Leitão se reunissem novamente para brincar ao ‘faz de conta’. De seguida, as memórias materializam-se numa série de esculturas que ilustram os objetos e cenários descritos nos testemunhos. À semelhança da obra Manual de Instruções (2021) — vencedora do prémio JOV’ARTE 2021 — os objetos que aqui apresentam têm uma plasticidade muito própria. Com formas irregulares e cores vibrantes, vemos uma guitarra azul sem cordas, uns sapatos vermelhos em cerâmica ou uma televisão suspensa. São peças que se parecem com objetos de brincar, e que podiam estar incorporadas no cenário de um teatro dadaísta.
Avançamos para O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem, onde quatro fotografias são impressas continuamente até desvanecer.Dispostas linearmente em quatro filas, as imagens sugerem momentos de reunião familiar — um passeio na praia e no campo, uma refeição onde se juntam várias pessoas, e momentos de brincadeira num parque infantil—. O exercício aqui passa por imprimir as fotografias repetidamente até o tinteiro acabar. A definição da imagem vai desaparecendo, as fotografias transformam-se num conjunto de sombras abstratas, simbolizando o tempo e o desvanecimento da memória.
Por fim, na instalação audiovisual Ah Ah, a performance é para a câmara. Ao longo da exposição o rosto das duas raparigas foi-se tornando familiar e aqui reconhecemo-las. Apresentam-se para a câmara, com a intenção de se filmarem a dançar, a cantar e a representar. Os pixéis dominam a imagem, lembrando o princípio da era digital, e as músicas que se fazem ouvir confirmam que se trata de filmagens do início dos anos 2000 — a icónica Toxic de Britney Spears, lançada em 2003, é coreografada pelas duas raparigas —. Os três vídeos surgem no início intercaladamente, tanto nas paredes como no teto, mas rapidamente o caos e a energia frenética das crianças instala-se, as imagens sobrepõem-se, e o flicker acontece. Aqui, o brincar para a câmara sugere a intenção de reconhecer a própria imagem e corpo. À semelhança de um exercício existencial, esta dança entre o consciente e o inconsciente é movida pela procura do Eu. A fantasia da brincadeira desvendou sentimentos, aspirações e potencialidades escondidas, e em conjunto, as artistas ainda crianças, já demonstravam o anseio da expressão através da performance.
Este não é um lugar estranho para as crianças, também elas são convidadas a se relacionarem com a arte contemporânea, seja por se identificarem com o universo que é exposto, ou pela secção interativa que faz parte da exposição, onde encontrarão um escorrega e um jogo da memória.
Um Dó Li Tá, convida a “deixar os sapatos de fora” e a restaurarmos a ligação com a nossa criança interior.
A exposição está patente na Galeria Municipal Vieira da Silva em Loures até ao dia 25 de março de 2023.