Há ainda algo por dizer – Debaixo da pele no Museu Berardo
No último dia 5 de novembro, compareci na conversa em torno da exposição antológica Debaixo da pele do artista Miguel Telles da Gama, que está patente desde 6 de julho até ao dia 31 de dezembro no Museu Coleção Berardo em Lisboa.
A conduzir o evento, a diretora artística do Museu, Rita Lougares, juntou-se ao próprio artista, também a José Luís Porfírio e a João Silvério numa conversa informal a respeito da exposição como o seu assunto principal. Além de comentarem a respeito da obra do artista, enquanto eventualmente apontavam alguns insights e críticas sobre a obra de Telles da Gama.
Debaixo da pele, surgiu a partir do desafio proposto pela diretora artística do Museu em realizar uma exposição antológica do artista, ainda antes da pandemia, no entanto que só decorreu neste verão. A premissa de uma antologia é expor os melhores exemplares da obra de um artista, com o que supostamente melhor representaria o seu percurso de trabalho. No entanto, de acordo com o curador José Luís Porfírio, esta exposição não pretende ser um resumo, e sim uma obra nova, construída a partir de fragmentos anteriores do seu trabalho. A escolha do curador deu-se de maneira parcial com influência do próprio artista, pois segundo o próprio, ele e Porfírio “falam a mesma língua”.
Miguel Telles da Gama (Lisboa, 1965) expõe regularmente desde o início dos anos 1990 um trabalho que, segundo José Luís Porfírio, é o de um pintor abstrato que trabalha figuração. De facto, desde o início do seu percurso, ainda com a exposição Arremessos, na Galeria Novo Século, Telles da Gama trata da figuração enquanto linguagem. Apesar disto, a sua figuração atende a ordem dos fragmentos, uma vez que o seu método de trabalho subjaz no entendimento de que tudo já foi inventado no mundo. Tanto as cores, quanto as imagens, e até as palavras, embora, a princípio, nem tudo tenha sido dito. Será mesmo?
A exposição desenvolve-se no piso inferior do Museu Coleção Berardo, no plano acima de onde se encontra a exposição (também antológica) Abstracto, Branco, Tóxico e Volátil de Julião Sarmento. O artista, falecido no ano passado, também trabalhava de maneira exímia no que diz respeito à utilização dos signos fragmentados para compor significantes incognoscíveis.
Dos anos 80 a 90, um grande número de artistas experienciou os impactos tanto do cinema mainstream, quanto da videoarte experimental na sua práxis artística. Especialmente em Portugal, que até o ano de 1974 vivia sob o regime salazarista, onde a censura era institucionalizada, assim como os cortes abruptos dos filmes em exibição (quando muito eram sequer exibidos). A partir da abertura do país, viu-se o desenrolar, como o crescimento de uma onda no oceano, da utilização intensa da fragmentação das imagens nesta geração que cresceu sob o véu do limite.
Claramente, não se pode dizer que esta tendência seria uma novidade, pois, pode-se afirmar que esta seja na verdade, uma tendência humana em recorrer à montagem e sobreposição das imagens – amplamente vista desde as cavernas de Chauvet, até o efeito Kuleshov. No entanto, a partir dos anos 80, viu-se em Portugal a crescente de um gosto comum pela utilização da fragmentação como uma língua na linguagem figurativa.
Ou, talvez esta seja uma coincidência com a obra de Telles da Gama.
A exposição partia do princípio de que a pele seria equivalente à ideia da ´página lisa´[1] de Ítalo Calvino em O Cavaleiro Inexistente, “onde tudo podemos encontrar: imagens, palavras e cores assumidas em formas e consistência diversas”[2]. De acordo com a própria folha de sala da exposição, há uma ‘pulsão transformadora’ no pincel que recorre ao que já existe, manipulando, cortando, escondendo ou fazendo desaparecer.
O desaparecimento foi um tema constantemente levantado durante a conversa, uma vez que na prática de Miguel Telles da Gama, o desaparecer é mais importante do que o aparecer.
O percurso da exposição começava com Azul Profundo (2014), continuava com as peças mais recentes — os 70 ex-votos por uma vida sexualmente animada (2021) —, mudava-se para um espaço labiríntico onde soa a palavra de Lou Reed, em Vanishing Act (2016), atingia uma vertigem central com as armaduras de Lux in Tenebris (2018), passava pela imagens gráficas do período entre 2003 e 2004, exibia Reserva de caça (1990), ensaiava uma narrativa com pinturas de Emotional Rescue (2007) e confrontava os Contos de Perrault em Passing Through the Red (2013) “com um teatro de personagens à procura de autor em Encenações (1999-2003)”[3]
Destacam-se aqui três momentos específicos. Lux in Tenebris (2018), obra que já foi tema único da última exposição individual do artista em 2018 na Fundação Portuguesa de Comunicações. Lux in Tenebris, além de uma peça de Brecht, e versículo da bíblia, é também o título da série de acrílicos sobre papel de Telles da Gama que representam alguns fragmentos de armaduras brilhantes vistas dentro de um óculo íntimo. As imagens aproximadas não permitem que o espectador tenha total certeza de que a armadura está sendo habitada ou não, o que levanta uma aura de mistério própria e estimulante. Será que estas armaduras pertencem à mesma pessoa? Ou, estas seriam frames de um grande exército? Nunca saberemos.
Uma certeza é a escolha acertada em expô-las dentro de um enclave octogonal, que confere ares de mausoléu à série. Principalmente por estarem expostas mediante a luz baixa, decisão curatorial tomada de última hora (segundo o próprio José Luís Porfírio) em contraponto com o vídeo de Paulo Abreu.
Reserva de caça (1990), é uma peça de interesse, não só por denotar em si uma centralidade temática na obra do artista como também por recorrer ao início do seu percurso.
Os 70 ex-votos por uma vida sexualmente animada (2021), a obra mais recente da sua antologia dispensa comentários. Apesar de ser um chamariz aos olhos, o verdadeiro interesse da primeira sala está na obra da oposta, Sem título (2005).
Uma exposição antológica é sempre entendida enquanto um epítome na carreira de um artista, não só pelo esforço logístico em congregar num só sítio as melhores obras de uma vida inteira de trabalhos. Mas também, por representar a sua consagração, ainda mais se for realizada numa das maiores instituições de arte contemporânea do país.
Um dos maiores trunfos do trabalho de Miguel Telles da Gama é instigar a dúvida no espectador, tirá-lo do lugar comum das certezas, enquanto se evoca o desconhecido.
Debaixo da pele, instituiu a tábula rasa da dúvida permanente, ao mesmo tempo em que sedimentou que sempre há algo por dizer. Sob o escopo da utilização da fragmentação assente na linguagem figurativa, eu pergunto:
– Há ainda algo por dizer?
[1] Italo Calvino, O Cavaleiro Inexistente (Lisboa: Editorial Teorema, 2002).
[2] José Luís Porfírio, Miguel Telles da Gama Debaixo da Pele (Museu Coleção Berardo, 2022)
[3] Ibidem, 2022