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O ruído dos sonhos – Círculo Sede e Sereia

Organizada pelo Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, a exposição O ruído dos sonhos, em exibição no Círculo Sede e Círculo Sereia, revela-nos a diversidade de vozes artísticas de Miguel Ângelo Rocha (1964), Isabel Madureira Andrade (1991) e Russell Floersch (1960).

É no cruzamento do desenho e da escultura que a prática artística de Miguel Ângelo Rocha se tem vindo a desenvolver, criando obras que possibilitam uma outra perceção do visitante com o lugar onde são apresentadas. Num jogo de reinvenções, assistimos na presente exposição, à combinação de elementos encontrados, materiais mundanos, objetos ou partes de objetos de uso quotidiano – latas, contentores de plástico, caixas de ovos – que o artista eleva, nos objetos de parede expostos. Experimentador da experiência, de fazer fazendo, explorando a interdisciplinaridade de materias e técnicas e instigando a experiência do sempre impreciso, do encontrar procurando (…)[1], Miguel Ângelo Rocha cruza a investigação de propriedades pictóricas e escultóricas – pontos, linhas, planos, volume e cor – com o signo dos objetos que encontra e compõe, pinta e modifica, combinando a investigação formal com o legado do ready-made, sendo no confronto com a matéria, o gesto e o pensamento tornado coisa que se pode entender a ambição da sua obra[2]. Deixamo-nos seduzir pelas imagens e volumes que saem das paredes, cujas formas, cores, matérias, intensidade, leveza e tensão despertam a nossa atenção causando alguma estranheza e intrigando-nos, convidando-nos a uma interação, a que paremos para as contemplar numa procura por desvendar camadas de significação. Fugindo a categorizações o trabalho de Miguel Ângelo Rocha incita à participação do visitante e ao seu olhar, sendo ao mesmo tempo imersivo, experiência que nos é revelada logo no primeiro ambiente expositivo, na Sala Preta do Círculo Sede. Mergulhados na escuridão somos atraídos pelas três impressões sobre tecido de algodão intitulas Atelier #8; #9; #10 (2020), pelos contrastes e jogos de sombra e de luz que nas próprias fotografias constroem novos desenhos e volumes. Deixamo-nos seduzir pelas texturas, pelas dobragens e fisicalidade presente em cada uma das imagens fotográficas, que tanto nos apelam aos objetos que nelas figuram como à superfície. Realizadas pelo artista, as impressões a preto e branco da série Atelier, (2020) que nos acompanham ao longo da exposição no Círculo Sede, rejeitam a abstração e abrem caminho a um universo de possibilidades que a ação e o processo de construção possibilitam. Chamam-nos a atenção as carapaças de crustáceo que figuram em Atelier #9 e #10, numa possível alusão à relação entre interior/exterior, e que se materializam em Atelier #11 num diálogo com as disposições de planos e triangulações, estendendo-se como exercícios de geometria para fora das margens da peça fotográfica. As esferas, elemento significativo no vocabulário do artista, materializam-se como volumes escultóricos em Atelier #12; #13; #14 e #15, elementos complementares que se relacionam e são introduzidos nas imagens fotográficas de paisagens, peças do artista e do seu próprio atelier. A transgressão de fronteiras entre disciplinas artísticas, a manualidade e a gestualidade do fazer e da procura de M.A.R., e o caráter ambíguo da sua obra adquirem uma nova intensidade nas esculturas da série Pedra, 2020. Recorrendo a materiais e objetos de uso corrente – contentores e plástico, tecidos e cordéis – M.A.R. cria e revela-nos as suas pedras, peças de parede que nos acompanham no Círculo Sede e Sereia (Sala B). Embora utilize materiais moles no revestimento das pedras – têxteis, cobertores de poliéster, tecidos de algodão e t-shirts – o artista confere-lhes dureza, peso e tensão que sentimos à medida que observamos as suas formas. A este propósito destaquemos o sentimento de constrangimento e tensão, de um corpo que se pretende libertar, evocado em Pedra #15; a sensação de movimento, dinamismo, mas também de desconforto provocado pelo arame de ferro que cerca Pedra #9, ou a tensão criada pelas estruturas de madeira de faia que esticam cordéis, Pedra #13 e #14, em que o vazio surge como elemento da volumetria. Ainda no Círculo Sereia destacamos as duas séries de esculturas-objetos de pequena dimensão do artista Cristal (VII, VI, IV, V, IX e VIII) e Lunar (4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15) que, em exibição nas paredes das salas C e A respetivamente, evocam questões relativas aos materiais e cores, ao equilíbrio e à subversão da natureza das matérias-primas, objetos manufaturados que se tornam elementos cenográficos, geometrias e volumetrias construídas a partir de cartão e caixas cartonadas. A encerrar a exposição no Círculo Sereia, a última obra do artista em exibição, Eco #2 (2018) convoca o nosso olhar para a contemplação do emaranhado de círculos e discos em contraplacado branco: observamos a materialização de linhas fluídas do desenho através da madeira, a organicidade de gestos livres, rápidos e fluídos, o dinamismo das formas e torções da matéria, como algo que se movimenta no espaço assumindo diferentes configurações num limiar entre a solidez e o vazio.

A inspiração que surge a partir do fazer, o confronto entre a possibilidade do controlo e a imprevisibilidade plástica dos materiais, unem os trabalhos de M.A.R. aos de Isabel Madureira Andrade. Na sequência do que tem vindo a desenvolver nos últimos anos, no contexto de pintura e desenho, a obra da artista nasce de imagens que capta no seu dia a dia ou que cria, e a partir das quais faz decalques, sobreposições, explorando jogos de simetria, construindo imagens autónomas que se afastam do referente inicial, em que geometria, a imprevisibilidade e a cor assumem papel de destaque. Partindo de uma prática de transposição de objetos – ready-made – através da técnica de frottage, cria padrões e ritmos visuais através dos quais explora diálogos entre linhas, manchas e cores. Em O ruído dos sonhos mergulhamos na sua prática, no seu processo de experimentação, de pesquisa e exploração de texturas, escalas, mutabilidade e plasticidade dos materiais – acrílico, óleo, gesso, papel, tecido. No Círculo Sede apresentam-se os trabalhos mais recentes da artista, datados de 2022: num processo de observação íntimo de duas pinturas de pequeno formato nas quais a ritmicidade vertical se impõe, constatamos a investigação da artista ao nível da cor – por vezes numa combinação entre o óleo e o acrílico – e a sobreposição de camadas de tinta sobre as telas. É com os trabalhos pertencentes à série Mármore que a obra da artista atinge outro fulgor: se em Mármore #5 e #2 nos deixamos seduzir pela delicadeza dos padrões, pela luminosidade e subtileza das cores do pigmento que impregnam o papel, é em Mármore #3, #4 e #8 que a diluição de padrões e exploração de variações cromáticas atingem o seu auge em formas cuja organicidade conferem ritmo e vibração às composições. Investigações a que dá continuidade em obras de diferentes escalas e que exploram diferentes relações espaciais com o visitante, em exibição no Círculo Sereia. Nas duas primeiras salas do espaço observamos imagens pictóricas abstratas, geométricas, por vezes desenvolvendo jogos de simetria: formas que nas várias pinturas se vão repetindo criando padrões, que por sua vez se desdobram em si mesmos de forma contínua, imprimindo sensações visuais de profundidade e de relevo. Da repetição de padrões e matrizes, simetrias incompletas, grelhas elípticas e linhas que se cruzam e entrelaçam, originando registos fluídos sob uma paleta cromática variada, seguimos para o esquema monocromático dos trabalhos de diferentes formatos e matrizes que se exibem na última sala da exposição, que como positivos e negativos nos revelam a racionalidade geométrica da grelha em composições delicadas que sugerem uma continuidade, num ritmo visual que se propaga.

A liberdade de construção e desconstrução, e a incorporação de imagens preexistentes como fragmentos da memória do atelier, unem o processo de trabalho da artista ao de Russel Floersch na sua busca repetida por aquilo que se perdeu ou apagou. No campo da memória e do arquivo, quais objetos descobertos numa expedição arqueológica, observamos no último piso do Círculo Sede a instalação LODGER, em que dispostos sobre uma mesa, modelos escultóricos construídos e pintados pelo artista convidam-nos à contemplação e criação de histórias que os mesmos podem suscitar. Combinando uma variedade de materiais reaproveitados, incluindo embalagens de consumo, recipientes, copos de plástico, madeiras, espuma e outros materiais descartáveis, Floersch cria objetos discretos que revisita no tempo, reconfigurando formas e posições, acumulando tinta num desejo de cobrir ou proteger.  Como uma narrativa temática, a instalação decorre um processo de descoberta e redescoberta do artista que nos convida a observar os materiais quotidianos nas suas novas expressões, cujas formas derivam de descrições de eventos que ocorreram ou foram imaginados. Numa prática experimental de construção e pintura de modelos escultóricos referentes a um lugar e um estender do seu tempo, Floersch explora a tensão entre memória e esquecimento, numa instalação em que o território da mesa ocupado por objetos que originam uma composição semi-aleatória nos evoca An Anecdoted Topography of Chance de Daniel Spoerri.

A exposição O ruído dos sonhos, está patente no Círculo Sede, Círculo Sereia até 3 de dezembro.

 

 

 

 

 

 

[1] ESCARDUÇA, Ricardo – O Ruído dos sonhos. Folha de sala da exposição, 2022.

[2] CRESPO, Nuno – Vazio escultórico, In “Antes e depois”. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p.11.

Mafalda Teixeira mestre em História de Arte, Património e Cultura Visual pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estagiou e trabalhou no departamento de Exposições Temporárias do Museu d'Art Contemporani de Barcelona. Durante o mestrado realiza um estágio curricular na área de produção da Galeria Municipal do Porto. Atualmente dedica-se à investigação no âmbito da História da Arte Moderna e Contemporânea, e à publicação de artigos científicos.

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