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Artissima: em Turim, a arte tomou conta da cidade

Uma feira bem curada, com enorme sucesso de vendas, belíssimas exposições espalhadas por museus, galerias e fundações, e um público considerável a aproveitá-las, são razões para exclamar: bem-vindos de volta a Turim!

De facto, tanto dentro como fora da Artissima, respirou-se um ar milagroso!

Não tem sido comum sentir tanto otimismo nestes tempos incertos e de grandes preocupações, porém a última semana da arte italiana de 2022 trouxe consigo uma boa onda de energia que fez brilhar os olhos, quer dos galeristas, quer dos amantes de arte contemporânea em geral.

«Antes da feira começar, já tinha vendido duas obras de Jonathan Monk», contou-nos com satisfação Nicola Mafessoni, dono da galeria LOOM, em Milão.

Semelhante entusiasmo manifestaram dezenas de outros galeristas, com quem nos encontrámos por esses dias, dentro e fora do Oval Lingotto, sede da feira de Turim.

Veronica Veronesi, da Gallleriapiù de Bolonha, disse-nos: «Achei que Luigi Fassi – o novo diretor da Artissima – democratizou o evento: fez um mapa das galerias quase circular, para não cansar os visitantes e os colecionadores, e distribuiu-as sem uma ordem particular, o que significou que as mais fortes não ficaram junto à entrada, como sempre aconteceu no passado. E isso foi muito bom para nós, que somos as galerias mais pequenas, mas também aquelas que fazem o esforço maior para estar cá».

Entusiasta estava também Federica Schiavo, da Schiavo Zoppelli Gallery (Milão e Roma), que nunca tinha visto tantos curadores, marchands, diretores de museus e outros profissionais numa feira italiana: «Estou estupefacta, para mim a Artissima constitui a melhor feira de Itália e uma das melhores na Europa», referiu a galerista. Alberto Peola, que tem a sua base em Turim, concordou com ela e expressou palavras de encómio tanto relativamente ao ótimo trabalho realizado pelo diretor e pela equipa de curadores das secções Present Future, Disegni e Back to the Future, como pela resposta dada pela cidade à semana da arte.

De facto, Turim recheou os seus museus, fundações e galerias com exposições requintadas e originais, cuidadosamente curadas – ninguém se arriscou, por exemplo, a propor nomes e apresentações demasiado extravagantes: para quem esperava grandes golpes de originalidade, o compromisso ficou adiado.

Iniciemos então o nosso percurso pela Fundação Sandretto Re Rebaudengo. Quatro novas exposições foram aqui inauguradas no começo de novembro, entre as quais a do pintor Victor Man e a vídeo-instalação da artista portuguesa Diana Policarpo, vencedora do Prémio Illy Present Future em 2021. De Victor Man podem encontrar-se dez anos de retratos e auto-retratos resumidos em vinte obras, todas envoltas numa aura de mistério, tanto pelas cores utilizadas como pelos olhares desses rostos assombrados. Não é por acaso que a exposição se intitula Eyelids, Towards Evening, que se pode traduzir por Pálpebras, Perto do Anoitecer. É preciso abrir, fechar, apertar, avizinhar o olhar a tentar entender o confronto com as alteridades radicais que sempre se revelam no outro e em nós mesmos, seguindo as palavras de Arthur Rimbaud.

Liquid Transfers, o projeto de Diana Policarpo, dá continuidade à pesquisa da artista à volta das interconexões entre a natureza e a sociedade e desta vez o protagonista é o denominado fungo Ergot, aparentemente responsável pela última grande intoxicação coletiva em 1951, em Pont-Saint-Esprit, em França. Entre as múltiplas teses sobre o insólito acontecimento (que causou várias mortes), pode destacar-se a que denuncia a utilização desse elemento como arma bacteriológica em experiências com várias populações. Uma ocasião especial para refletir também sobre aquilo que vivemos globalmente nos últimos três anos.

Outra lindíssima exposição que apela a sincretismos entre a arte de hoje e o seu uso como cura das aflições humanas é Hic sunt dracones, na Galeria de Arte Moderna – GAM. Aqui, o diálogo ocorre entre a artista italiana Chiara Camoni – escultora ligada a uma poética que envolve materiais como cerâmica, madeira, flores e metais -, que construiu estruturas totémicas deslumbrantes, e desenhos realizados pelos doentes psiquiátricos do Atelier dell’Errore: a mistura é explosiva, tornando visível o facto de a arte sempre nascer a partir de um tumulto profundo.

Continuando a ter como alvo o corpo”, fomos até à Fundação Merz, onde estava hospedado o projeto site-specific Alert, da artista israelita Michal Rovner. Em resposta ao problema das grandes migrações acontecidas nos últimos anos na área do Mar Mediterrâneo, e com o intuito de sensibilizar para essa questão, a artista passou um período de tempo a pernoitar no meio do campo, no escuro total, rodeada de chacais. Michal Rovner descreve esses encontros como uma aproximação discreta, mas sempre em estado de alerta: afinal, nós somos o reflexo desses animais selvagens, a forma como nos exploramos uns aos outros, aproximando-nos e depois fugindo perante situações de perigo ou menos confortáveis.

No fundo, a desconfiança dos chacais espelha o nosso mesmo instinto e o medo agregado à curiosidade que nos apertam quando confrontados com a alteridade.

Destacaram-se dois projetos especiais, um nos espaços das OGR, Officine Grandi Riparazioni, onde de resto estiveram expostos grandes artistas internacionais, e o outro no Castelo de Rivoli.

Arthur Jafa é o primeiro, nas OGR, com uma nova instalação sobre o tema da negritude, cujo título é RHAMESJAFACOSEYJAFADRAYTON. A ideia é relatar como se definem a potência, a beleza e a alienação da música negra dos Estados Unidos através dos media, seja em imagens fixas ou no cinema. A pesquisa, composta por um vídeo e por uma galeria de ícones, é também uma homenagem aos guitarristas Arthur Rhames (1957–1989), Pete Cosey (1943–2012) e Ronny Drayton (1953–2020).

Olafur Eliasson, por seu lado, transformou a Manica Lunga (“Manga Longa”), a mais célebre área do Castelo de Rivoli, num dispositivo ótico onde surgem complexas formas fluidas, dando a ilusão de estarmos num lugar bem mais amplo do que na realidade é, graças a jogos de espelhos e projeções de luz.

Mais uma sugestão: se estiverem por Turim, não percam a oportunidade de visitar a renovada Pinacoteca Agnelli, mesmo ao lado do Oval Lingotto: a sua nova diretora, Sara Cosulich, deu forma a uma verdadeira High Line italiana no telhado do prédio, que foi outrora a pista onde se testavam os carros da Fiat. Hoje podem-se lá descobrir as instalações de Liam Gillik, Sylvie Fleury, Superflex ou Nina Beier, entre outros artistas. Um lugar incrível, a demonstrar o quanto a cultura visual pode mudar a atratividade e a nossa experiência dos lugares.

Por fim, merecem uma menção especial também as outras feiras que acompanharam esta semana da arte. Flashback, desta vez, desenrolou-se num belo palácio junto à colina turinesa, com mais de 50 galerias a apresentar um misto de arte antiga e contemporânea, tendo alcançado a cifra de 25 mil visitantes; The Others Art Fair criou no pavilhão do arquiteto Pier Luigi Nervi um percurso labiríntico, onde se podia encontrar uma boa seleção de jovens galerias e artistas italianos. Aqui, o público também respondeu de uma maneira muito positiva, com longas filas logo desde o dia inaugural, a 3 de novembro.

À laia de conclusão, não é nenhuma mentira afirmar que, durante uma semana, a arte, sob todas as suas formas, tomou realmente conta da cidade: um milagre, de facto!

A Artissima decorreu de 4 a 6 de novembro em Turim.

Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte. Atualmente é Diretor Responsável da revista italiana exibart.com e colaborador para o semanário D La Repubblica. Além de jornalista, fez a edição e a curadoria de vários livros, entre os quais Un Musée après, do fotógrafo Luca Gilli, Vanilla Edizioni, 2018; Francesca Alinovi (com Veronica Santi), pela editora Postmedia books, 2019; Prisa Mata. Diario Marocchino, editado por Sartoria Editoriale, 2020. O último livro publicado foi L'involuzione del pensiero libero, 2021, também por Postmedia books. Foi curador das exposições Marcella Vanzo. To wake up the living, to wake up the dead, na Fundação Berengo, Veneza, 2019; Luca Gilli, Di-stanze, Museo Diocesano, Milão, 2018; Aldo Runfola, Galeria Michela Rizzo, Veneza, 2018, e co-curador da primeira edição de BienNoLo, a bienal das periferias, 2019, em Milão. Professor convidado em várias Academias das Belas Artes e cursos especializados. Vive e trabalha em Milão, Itália.

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