Tu chamas-lhe Utopia, eu chamo-lhe Mundo
A cada ano se escrevem novos e decisivos acontecimentos de impacto global. Estamos em 2022 e dois factos em particular interessa-me destacar: a celebração do bicentenário da independência do Brasil, e a morte da rainha com o reinado mais longo da história da coroa britânica, Elizabeth II. Se pouco parece conectá-los, diria que ambos instigam o debate político e cultural sobre história e os seus ismos – tanto o imperial, quanto o colonial – que teimamos em não cessar. Não é novidade que sob a monarquia inglesa prosperou um mundo profundamente desigual, iluminado, finalmente, ao seu fim “So long as she reigned, the establishment was able to gloss over the horrors of empire. Now is a time for painful truths”.[1] O caso inglês serve aqui meramente de exemplo (sobre o Brasil, muito terão os portugueses a dizer) das muitas memórias angustiantes de um legado que o presente se recusa a reconhecer, tampouco a tentar mudar: a pilhagem de terras e diamantes na África do Sul, a violência infligida no Quénia ou o genocídio na Nigéria; apenas para citar alguns casos. O que têm em comum todos eles? A consolidação de abusivas esferas de poder entre hemisférios norte e sul.
É fruto deste contexto que a exposição O Estado do Mundo: Museu do Atlântico Sul, inaugurada a 22 de setembro nas Galerias Municipais de Lisboa, acontece. Tão pertinente agora, como foi em 1965 quando pensado primeiramente, este “Museu” inaugura duas semanas exatas após o falecimento da monarca inglesa. Dado curioso.
Entrados no espaço somos visitantes, quase 60 anos depois, de uma maquete proposta por Marcelo Rezende (seu curador) àquele que foi outrora o projeto museológico sonhado por Agostinho da Silva[2] para o “Museu do Atlântico Sul”, cuja missão assentaria na “capacidade fraternal de entrelaçamento do diverso”. Assim denominou Agostinho a intenção em fundar uma coleção a partir de artefactos históricos, tradições e etnografias, e peças artísticas oriundas dos países que constituiriam o que definia como “Novo Equador” (países do baixo hemisfério, em situação económica e sociopolítica mais enfraquecida e, por isso, subjugados à exploração gananciosa das grandes potências mundiais). A desígnio do seu autor estava a materialização de um símbolo e ferramenta a partir da qual estes países se poderiam aliar para um “retorno à ordem” cultural e política, em prol da salvaguarda das suas individualidades e de vitais transformações nas estruturas de poder; o que, ainda hoje e após a sua independência, permanece crucial. Quanto valem os conceitos de identidade nacional e direitos humanos? O que precisamos ainda esclarecer para finalmente lograrmos de uma coexistência pacífica e respeitosa entre nações? Para quebrarmos o binómio centralidade/periferia? Para cumprirmos a “reconstrução” pós-colonial?
No Pavilhão Branco, O Estado do Mundo: Museu do Atlântico Sul casa obras de treze artistas de todo o mundo, com a documentação pessoal de Agostinho da Siva e as publicações que lhe pautaram o pensamento e o gesto. É este um prelúdio a uma narrativa que teria muito mais para contar, aqui disposta em dois pisos, sucessivos espaços dentro de espaços, ainda que mentalmente permaneçamos num só lugar – o da analogia e do choque entre peças, cuja a estética nos paralisa face à grandeza do seu eco: o da luta histórica e política que lhes deu origem. Eterno fantasma.
Recebe-nos Assaf Gruber, com Movement 6 sobrepondo dois momentos históricos: em plano recuado uma fotografia dos protestos políticos na Berlim Ocidental antes de 1989, e, na sua frente, um verdadeiro e precioso coral vermelho, acervo da sala dos tesouros do Grünes Gewölb, objetificação do poder económico da monarquia. Repercussões políticas emergem, igualmente, nas coleções de Mário Teixeira e José Carlos Santana Pinto pontuando os espaços com questões de património e expropriação. No primeiro caso as figuras de bronze – o caçador, a maternidade e figura feminina – que possivelmente retratam o povo Mangbetu, evocam poder e transcendência; enquanto os acervos de Santana Pinto rememoram a resiliência das tribos que lhes deram a mão e a forma, ao mesmo tempo que nos avivam a memória para a fetichização etnográfica destes que são os exemplos maiores da preservação das suas culturas. As antropomorfas bonecas Carajás viriam a desvirtuar-se, fruto da interação interétnica com os colonizadores, com a comercialização de um modelo fabricado unicamente para fins decorativos; e as bonecas Ashanti reduzir-se-iam a troféu cultural quando, após anos de resistência, o Império Ashanti cai à mercê do Império Britânico.
Semelhante ressonância histórica sente-se na tapeçaria de Marcelino Santos, a quem resistência está no sangue e no percurso. A matéria-prima em destaque – o algodão – ícone maior da identidade cultural de Cabo Verde serve aqui para reavivar, não apenas o trabalho escravo, mas também o empoderamento e a frente política daqueles que fizeram deste material e da sua harmonia, uma voz.
Dar voz, seja à interferência natural do tempo ou à reação do público, é algo que reverbera nas fotografias em exibição de Terra, trabalho de Juraci Dórea. Uma exaustiva documentação do autor à arqueologia de pequenas comunidades baianas de enraizadas mitologias coloniais, com as quais desenvolve, há mais de quatro décadas, um projeto que questiona a veiculação das obras com o público. Optando por uma mudança radical no formato expositivo, e recorrendo a materiais e técnicas que refletem a identidade cultural e paisagística da população local, Dórea cria esculturas de madeiras e couro no espaço público, tais como totens ou marcos de grande impacto visual, que eventualmente acabarão por desaparecer. Uma noção de arqueologia de memórias ainda recuperada por Maxim Malhado, segundo uma poética de redescoberta de espaços e reinvenção de formas, a partir do tema do qual recorrentemente parte, a casa. Em Three Popular Houses, três pequeninos modelos habitáveis em escala reduzida aludem ao seu projeto ESTEIO, uma galeria de arte de espírito comunitário.
Fala-se também da questão memorial, quer no espaço coletivo, quer no individual, em dois momentos. Memória para 14 Bustos e 12 placas de Márcio Carvalho, exaltando o lado do revolucionário e o do colono, respetivamente, incitam à reflexão sobre monumento público, questionando o seu valor enquanto documento histórico. Quem erige essa memória? Qual o seu direito? Que verdade? Já de forma pessoal, Tenzin Phuntsog introduz os temas da identidade e do deslocamento por meio de quatro fotografias que documentam a performance My Skins, onde exposto à luz solar invoca a herança tibetana, resultado da evolução genética que possibilita a este povo habitar altas altitudes sem prejuízo da intensa radiação UV. É a mudança gradual da tonalidade da pele que lhe permite, simbolicamente, a conexão ao tio que nunca conheceu, interdito de entrar no país por motivos políticos.
Outro trabalho que manifesta de forma poética e melancólica o contexto histórico e político que está na sua génese é Dead Drawingde Charbel-joseph H. Boutros, cujo nascimento durante a guerra civil libanesa é impossível dissociar da sua criação artística. Uma experiência sensível, como sempre nos habituou, desta vez traduzida pela simplicidade de dois pregos, uma barra de grafite e um gesto invisível que outrora traçou o triângulo equilátero que agora se vê. Por sua vez, com olhos postos no futuro, A time & a place at some point in the future é a proposta em suspenso que nos deixa Johnathan Monk através da peça Somewhere Soon, e que encontra antagonismo em Fez show depois fechou eles todos fecham e todo o mundo sai de Tuti Minervino, cuja estratégica localização à saída da exposição reforça um futuro encontro já decidido. Da frase, de difícil compreensão gramatical que mais leva a deduzir do que a confirmar, adivinha-se uma tradução desafiante, enquanto nos desperta a inquietude do amanhã, do que restará. Qual é o peso de um mal-entendido cultural? E quantas histórias se escreveram desta forma?
Ritual e espiritualidade emanam as cinco esculturas de cerâmica de Jacira Conceição, onde se confrontam, em absoluto equilíbrio, os quatro elementos da natureza (água, ar, fogo e terra) em redor do quinto membro O Umbigo (centro) do Mundo. Pelas suas palavras e também pela falta delas, Jacira concede-nos a oportunidade de observar, sentir e, assim, pensar o intangível. Enquanto as Macumbinhas de Luísa Mota pontuam as paredes com as suas pedras preciosas, criações de caráter curativo, não representativo.
Ao final, Priceless, a instalação de Gisela Casimiro e Rodrigo Ribeiro Saturnino, dupla conhecida por fazer do ativismo gráfico engenho e missão para comunicar sobre identidade, pertença, nação e naturalidade, estrutura um comentário sagaz ao comércio de imagens e de toda uma cultura, consequência da exploração nas ex-colónias portuguesas. Aqui convivem mensagens diretas e cruas, com as reminiscências da infância – sabores, cheiros, imagens – cuja presença habitual tratou de banalizar. Não nos morreu a rainha, mas em Portugal vamos sempre a tempo de descobrir e emendar as penosas verdades. Não vejamos estes “souvenirs” como cânones em exposição, e não sejamos espectadores passivos de passagem. Tomemos a bofetada, que seja esta a oportunidade necessária para lhes restituirmos (e a nós) o sentido e a integridade. “Não há liberdade minha se os outros a não têm.”[3]
A exposição O Estado do Mundo: Museu do Atlântico Sul, está patente no Pavilhão Branco, Galerias Municipais de Lisboa até 15 de janeiro de 2023.
[1] This is a Britain that has lost its Queen – and the luxury of denial about its past, Afua Hirsch. The Guardian, 13 Setembro 2022.
[2] Filósofo, poeta, ensaísta, professor, filólogo, pedagogo e tradutor português (1906-1994).
[3] Agostinho da Silva