Dissonância e fragilidade no Contratempo de José Maçãs de Carvalho
Olhar o contratempo das imagens parece ser a proposta que nos faz José Maçãs de Carvalho na exposição que apresenta na galeria Carlos Carvalho Arte Contemporânea, Contratempo, com curadoria de Ana Rito, faz parte da programação paralela do IMAGO Lisboa photo festival.
À ideia de que para cada imagem existe um eixo temporal fixo, congelado no instante da sua captura, o artista acrescenta uma abordagem distinta, ocupada em colocar vários tempos em movimento no interior, e exterior das imagens, o exterior que nos é dado pelo próprio ponto de vista daquele que para as imagens olha, aquele que habita neste lugar carregado de dissonâncias, que podemos designar como o território do real.
A exposição apresenta aquilo que, em muitos casos, antecede o momento da apresentação das imagens. Falamos de espaços, tempos e enquadramentos que incluem o invisível e o fora de campo das imagens, criando a hipótese de gerar uma temporalidade renovada. Com esta exposição, José Maçãs de Carvalho traz à luz do olhar esse lugar que fica de fora, atribuindo-lhe legibilidade e visibilidade – tratam-se de imagens não (de)limitadas pelo modo de apresentação tradicional, a moldura criada pelo artista que dá corpo ao enquadramento da imagem -, mas antes, uma duplicidade de enquadramentos e tempos – os que permanecem no interior das imagens, deixando transbordar esses tempos reais, como veremos; e o enquadramento da imagem dado pelo artista, essa outra moldura criadora.
A série (after gerhard r.), 2022, parte de uma relação com as fotografias da série de pinturas que Gerhard Richter realiza em 1972, no contexto da representação alemã na Bienal de Veneza.
Maçãs de Carvalho atualiza estas imagens, aqui a o termo “atualização” utilizado no sentido que lhe oferece Walter Benjamin, sugerido, sobretudo, nas suas Teses sobre o Conceito da História.
As imagens desta série surgem na orientação horizontal, ao contrário do eixo vertical tido em conta por Richter. Existe, nesta escolha por parte de Maçãs de Carvalho, um ímpeto subversor no que respeita ao tempo das imagens que se conecta com a sua qualidade performativa. As imagens surgem despojadas do seu habitual contexto de apresentação, um processo “terminado” e repousado nas paredes do white cube, ou do museu, para serem vistas nesse outro tempo que também lhes diz respeito – o tempo real da dissonância -, que de acordo com Nietzsche, é sinónimo de alegria: “A alegria causada pelo mito trágico vem da mesma fonte que a sensação de prazer causada pela dissonância musical”[1].
Recuperando a noção de contratempo, em causa na música, a dissonância musical difere da harmonia, e de acordo com o filósofo alemão, esta tem mais a dizer que a linearidade em causa na harmonia musical. Essa desarmonia pode ser vista também nestas imagens, elas confundem-nos.
À moldura das imagens, ainda na série (after gerhard r.), soma-se uma outra, composta pelas mãos dos que que são invisíveis nas imagens, mas que lhe habitam os avessos.
A imagem dentro da imagem é um aspeto tratado em alguns dos trabalhos (S/ Título bouguerneau), 2016, da série Arquivo e Dispositivo – a moldura de um retrato pintado, surge no interior do frame de um outro retrato, por sua vez, capturado pelo artista, algo que gera um confronto não só de imagens – dois retratos -, mas também de dois tempos -, qualquer coisa que também é tratado na obra Video killed the painting stars (m. ray), 2021.
A obra em vídeo, apresenta uma pintura de Velázquez que trata de um confronto entre imagens presente em La Vénus del Espejo. O contratempo, neste caso, sublinha o fora de campo dado pela figura da Vénus, o seu corpo, por oposição à sua imagem refletida no espelho. Nesta obra estamos perante um duplo confronto – à pintura de Velázquez, que já apresenta este confronto, é adicionada uma outra camada – a ação de uma mão que desenha sobre essa imagem, aludindo a uma outra obra, Le Violon d’Ingres, de Man Ray. Há uma dimensão efetivamente temporal – o tempo da demora do desenho -, que nos traz não apenas a noção de tempo, mas a sua efetiva experiência, aliada ao media em questão – o vídeo -, que como indica o título “killed the painting stars”, uma vez que agora essas figuras são obrigadas, pelo gesto de Maçãs de Carvalho, a integrar o real -, partilhando-o connosco, neste tempo.
Ainda a este respeito, vejam-se os trabalhos (S/título borboletas), 2016 e (S/título (ciência), 2016, em que vemos o outro lado do que potencialmente poderia estar à nossa vista num museu de história natural, mas que aqui nos é apresentado na sua faceta mais frágil.
Creio que um dos aspetos a considerar na ideia de contratempo que nos apresenta José Maças de Carvalho, é a ideia de uma fragilidade que o artista trata como sendo afirmativa. As imagens que antes de nos olharem, parafraseando Didi-Huberman, são parte do mundo, partilhando connosco e o com o nosso olhar a mesma carne.
Numa janela embaciada, surge inscrito o nome Warburg. Do ponto de vista técnico, a magia desta imagem é a da sobreposição: à imagem de um conjunto de apartamentos é adicionada esta inscrição, que, ao olho, gera a ilusão, para aqueles de imaginação fértil, de que esta foi executada na própria imagem, tateando fisicamente — algo que se relaciona com o vídeo da Vénus de Velázquez. Na realidade, não foi assim. A palavra repousa por cima dos elementos daquela paisagem habitacional. Aqui a noção de fragilidade está igualmente implicada devido à efemeridade desta inscrição. O ar voltará a cobrir a janela deixando apenas a paisagem visível. Uma imagem que quase nos tira as palavras, pois ela remete, porventura, à noção de infinitude, tal como propôs Aby Warburg na execução da sua constelação de imagens – as relações e ligações são infindáveis, tal como o ar que a contratempo, fica por detrás das imagens.
Contratempo de José Maçãs de Carvalho, com curadoria de Ana Rito está patente na galeria Carlos Carvalho Arte Contemporânea até 10 de dezembro.
[1] Friedrich Nietzsche, Origem da Tragédia, Trad., Álvaro Ribeiro, Guimarães Ed.:Lisboa, p. 125