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Sementes Selvagens: Rivane Neuenschwander em Serralves

Depois das exposições de Leonilson e Mark Bradford, Serralves continua a ampliar a sua relação com artistas ativistas, com uma voz política relevante, na história recente do Brasil – defensores de causas como os direitos das minorias ou a denuncia da destruição da Floresta da Amazónia e consequente genocídio do povo indígena.

A exposição de Rivane Neuenschwander, tem curadoria de Inês Grosso e gravita em torno de uma média-metragem, desenvolvida em parceria com a realizadora Mariana Lacerda. Eu sou uma arara transfere para o interior do museu, um documento das ações promovidas pela artista em São Paulo. Herdeira de um Carnaval comunitário, diferente do glamoroso sambódromo do Rio, e de uma tradição artística que envolve o corpo e convoca o espectador, como os Parangolés, de Hélio Oiticica e o Divisor, de Lygia Pape; Rivane Neuenschwander desafiou mais de 100 artistas e ativistas a vestir a pele de espécies nativas da fauna e flora brasileira (fatos costurados pela artista a partir de materiais reciclados) e ocupar o espaço público, marcando presença em manifestações pela preservação ambiental, pelo feminismo e pela igualdade racial. A primeira aparição desta “floresta de cristal”, nas palavras de Neuenschwander, esteve associada ao Movimento Social Fora Bolsonaro, a 2 de outubro, coincidindo com a eleição do ex-presidente, dois anos antes da inauguração da exposição em Serralves.

Se por um lado, os paulistas têm sofrido com a privatização do espaço público e o declínio do comercio local e mercado tradicional, catapultados pela especulação imobiliária, ao mesmo tempo, durante a pandemia, assistimos à ocupação de ruas e parques, enquanto lugares de encontro, convívio, discussão e fruição. Tendo em conta as milícias e política opressora e conservadora dos últimos anos, Inês Grosso, sublinha a urgência da resinificação do espaço público, sendo este o lugar da emancipação da democracia per se.

“Eu sou uma arara”, é uma célebre frase do povo indígena Bororo, que tem sido estudada por vários filósofos e antropólogos da atualidade. Por ser uma ave falante, a arara convoca a ideia de espiritualidade, representando um elo de ligação entre o plano divino e o plano terrestre, as suas penas são usadas para adornar objetos e indumentárias utilizados em rituais fúnebres, muito importantes para a identidade do próprio povo. Os Bororo creem na transmigração da alma, acreditam que após a morte encarnam numa arara. Originários de Mato Grosso, são um dos mais de 300 povos indígena que têm vindo a desaparecer. Segundo a curadora o nome Bororo remete, curiosamente, para a configuração dos povoados que se constroem à volta de um pátio onde celebram rituais e festas, em associação direta com as ações de Neuenschwander que na forma de um bloco de Carnaval toma a rua como espaço de protesto face à política brasileira.

O Alienista é uma obra realizada em 2019, que recupera um conto de Machado de Assis, de 1882, sobre a história de um médico que retorna ao Brasil, depois de um período na corte portuguesa, obcecado por estudar a mente humana e identificar casos de suposta loucura. Com o apoio do governo local, o personagem cria a Casa Verde, um hospício, onde começa a internar algumas pessoas que entendia não estarem na posse da razão. Eventualmente, o médico acaba por internar mais de metade da população, desencadeando uma série de motins, que o leva a concluir que a exceção não são os loucos, mas aqueles que são completamente sãos, o que o leva a inverter a estratégia: soltando os loucos e internando os que estavam bem de saúde mental. No final do conto, o Alienista interna-se a si próprio e liberta os demais, considerando que era o único que se encontrava na plenitude das suas faculdades mentais.

Neuenschwander faz uma transposição desta sátira, para denunciar o regime opressor, a política do medo e o legado do colonialismo, apresentando uma série de figuras de papel mache inspiradas em personagens do conto de Assis e, ao mesmo tempo, caricaturas de figuras públicas brasileiras. Entre estas vemos O Alienista, vestido de azul e munido de um par de asas, à semelhança da montagem fotográfica viral de Bolsonaro, disfarçado de mosquito da dengue; O Revolucionário, um cato trajado de vermelho com uma foice na mão, à imagem do recém-eleito presidente Lula da Silva; O Rato, fardado de bandeira dos Estados Unidos, lembrando Sérgio Moro, o juiz que condenou Lula, na operação lava jato e, no centro da sala, A Morte. Seguindo a mesma lógica de trabalhos realizados nos últimos anos, como Em nome do medo, nas paredes encontramos pinturas de figuras entre o humano e o não humano, monstros sedutores que se apoderam do mundo tropical, refletindo sobre a colonização portuguesa, desde a sua forma predatória à exploração sexual.

Na Capela da Casa de Serralves, encontramos um trabalho icónico da artista, realizado em 2003. Desejo o seu desejo é composto por uma série de fitas coloridas com sonhos inscritos, que remetem às pulseiras do Senhor do Bonfim, uma tradição da cidade de Salvador. O espectador é convidado a substituir uma pulseira, por um papel com o seu próprio desejo, que será acrescentado à obra numa próxima exposição, concedendo uma dimensão participativa à obra, que sai do espaço museológico, para a rua, em resultado de uma expressão coletiva. Assim como no vídeo Eu sou uma arara,sublinha-se a missão não só da arte, mas também dos museus, enquanto agentes de transformação e ferramentas de protesto e resistência e da atual importância de falar de democracia, liberdade e direitos humanos. Uma análise do mapeamento de sonhos que compõem esta obra, apresentada em diferentes contextos sociais e económicos do mundo, ao longo de 20 anos, revela que o medo e o desejo são indissociáveis e que muitas vezes aquilo que desejamos é também aquilo que tememos.

Sementes Selvagens, de Rivane Neuenschwander, com curadoria de Inês Grosso, está patente no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, até 9 de abril de 2023.

Filipa Valente (Aveiro, 1999) frequenta o mestrado de Estudos Curatoriais, no Colégio das Artes (UC) e é licenciada em Artes Visuais e Tecnologias Artísticas, na Escola Superior de Educação (IPP). Trabalha na OSMOPE, como atelierista. É cofundadora da Galeria Ocupa. Escreve para a revista Umbigo. Foi assistente de Curadoria e Press-officer na Ágora_Bienal de Arte Contemporânea da Maia 2021. Participou na curadoria da exposição “No sonho do homem que sonhava, o sonhado acordou”, apresentada no CAPC (2021) e no MNAC (2022), sendo responsável pelos textos da folha de sala e da publicação. O seu percurso enquanto artista iniciou-se em 2019, destacando-se as exposições individuais: “Pedra Aberta” (Concertos que nunca existiram, 2019) e “A Forma do Vazio” (Galeria Ocupa, 2019); as exposições coletivas: “As pedras também constroem coisas” (Cisterna da FBAUL, 2021), “Presente Contínuo” (Centro de Arte Oliva, 2020), “Trabalho Capital # Greve Geral” (Centro de Arte Oliva, 2020) e “A Espessura do Mundo” (Espaço Mira, 2019); e a participação em eventos como: a mostra de videoarte no Canal 180, em parceria com a Ágora_Bienal de Arte Contemporânea da Maia 2021. Em 2021, participou no Laboratório de Investigação, Formação e Criação Artística | END+, produzido pelo Colectivo 84, com o projeto de escrita "Drama, na 3ª Pessoa" que integrou posteriormente o Festival END – Encontros de Novas Dramaturgias | 5ª Edição (2022).

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