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Maria Antónia Leite Siza, 50 Anos Depois em Serralves

Como nota introdutória à exposição Maria Antónia Leite Siza, 50 Anos Depois[1], visionamos no átrio que antecede a Biblioteca de Serralves o testemunho em vídeo de Álvaro Siza Vieira sobre a artista (1940-1973) e a sua prática, num prólogo cujos fatos e recordações são narrados não apenas pelo arquiteto, mas pelo homem que divulga e salvaguarda o legado artístico de quem amou.

A exposição antológica, concebida a partir dos cem desenhos doados por Álvaro Siza Vieira à Fundação de Serralves – aos quais se acrescem pinturas, gravuras, bordados, cartas e fotografias – amplia nas palavras do curador António Choupinha a visão sobre a artista, uma visão mais eclética daquilo que se conhece até agora[2], em que à fase mais madura da sua prática, revelada na primeira e única exposição em vida da artista, realizada na Cooperativa Árvore em 1970[3], se acrescentam perspetivas desde a sua juventude com a inclusão de trabalhos realizados enquanto aluna da Escola Superior de Belas-Artes do Porto.

De destacar a decisão curatorial em revelar uma década de criação da artista, dos anos 60 a 73, seguindo não uma ordem cronológica, mas temática que logo na primeira sala da exposição nos mergulha num compêndio de experiências: da delicadeza do bordado sobre linho, ao relevo cru e à intensidade das linogravuras de reduzidas dimensões, passando pelo traço fino e compulsivo dos desenhos a tinta da china. De caráter histórico e documental a exposição dá a conhecer o extenso corpo de trabalho da artista, que recorre à experimentação de materiais e de suportes, ilustrativos da sua imaginação e universo criativo, bem como a sua intimidade e pensamento através das fotografias de família e de viagens, testemunhos de amigos, cartas e postais que lhe dão voz e presença. Uma presença constante que nos acompanha pelos diversos núcleos expositivos em palavras provenientes de excertos de cartas de Tótó (como era carinhosamente tratada) que transcritas nas paredes lemos como se nos falasse ao ouvido: Acabei agora de fazer um desenho que me deu cabo da cabeça. / Percorro aquele caminho sentindo-me a madrugada com os lobos a uivar e o sol prestes a nascer. Organizados segundo oito núcleos temáticos observamos os desenhos e a intimidade com que aborda os retratos; a importância que atribui à multiplicação feminina; a questão do desdobramento de entidades, a sua metamorfose entre o inanimado e o onírico, numa mostra que segundo o curador se desenvolve em dois níveis: um em que estamos como a artista a sonhar, a olhar para cima, e outro mais doméstico, como se estivéssemos com ela a desenhar (…) a admirar os desenhos e a sua qualidade gráfica.

Raramente datados e assinados, os desenhos doados à Fundação de Serralves e cuja seleção ficou a cargo de Philipe Vergon, constituem uma mostra representativa da evolução artística de Tótó: desde os trabalhos a pena às aguarelas mais expressionistas. Desenhos a carvão, esferográfica, grafite, lápis de cor, tinta da china e aguarelas cujos traços seguros, rápidos e espontâneos, sem quaisquer estudos prévios e resultantes de impulsos ricos e criativos, revelam composições perfeitamente controladas.

Podia não desenhar durante semanas ou meses. Num dia não programado surgia o desejo do desenho. (…) Uma após a outra moviam-se as imagens, os músculos sobre os ossos sulcavam os corpos, as emoções despertavam nas faces e nos gestos: dez, vinte, trinta, conforme o dia ou com mais frequência à noite, acompanhando o meu serão.[4]

 Como se tivesse treinado durante as longas pausas, Maria Antónia oferece-nos desenhos que ocupam a página com uma segurança total. Não há nenhum desequilíbrio na folha e isso é uma qualidade de poucos, que tinha, por exemplo, Picasso. Aquele desenho devia estar inscrito onde realmente está.[5]

A recusa da abstração geométrica e o favorecimento do figurativo, fugindo ao tramites da época, acompanham-nos ao longo da mostra num léxico temático vasto. De caricaturas a desenhos a carvão, retrata amigos e familiares, chamando-nos a atenção a expressividade do retrato de Laura Soutinho, de rosto sério e olhar intenso, bem como a sequência humorística de retratos de Álvaro Siza, sublimando-o ao ponto da essência do arquiteto: um nariz com óculos, uma mão que desenha e a outra que segura o cigarro. Dos tempos de faculdade exibe-se o seu mais famoso retrato desse período, cedido a Serralves pela Fundação Gulbenkian, o óleo sobre aparite, Modelo, realizado pela artista em 1960, e cuja intensidade atribuída à figura humana surpreende, como se a mesma se expandisse para fora da tela.

De pendor fabulístico, mas também diarístico deixamo-nos conduzir pela rapidez da mão que praticamente não se levantava do papel, pelos seus traços enérgicos, ascendentes e ziguezagueantes em figuras flutuantes, esguias e inquietantes cujos corpos se contorcem. Num dos conjuntos temáticos Leito e Onírico, a cama assume papel de protagonista em desenhos, ora como espaço reconfortante de abrigo e refúgio comunitário, ora como leito conjugal a que se associa uma carga sensual, e ainda como leito solitário, espaço de repouso e introspeção de um só ocupante. Próximo encontramos a sequência Desdobramento e Metamorfose, que nos revela entidades que são unas e ao mesmo tempo múltiplas, algumas das quais alicerçadas em experiências emocionais da infância e que a artista já adulta transfere para a sua obra. A este propósito citemos a título de exemplo o desenho em que três figuras conectadas pela mesma base, terão tido como fonte de inspiração os três pinheiros siameses do jardim do palacete na avenida da Boavista onde nasceu, e que segundo o curador terão alimentado a noção de desdobramento antropomórfico na sua obra. Multiplicações e transfigurações, maioritariamente no feminino, são centrais no corpo de trabalho da artista, como nos revela o desenho sufragista que realizou do Dia dos Estudante de 1962, em que não há um único homem no ajuntamento revolucionário; ou a reinterpretação pessoal e afetiva, igualmente no feminino, das Bodas de Caná e do Beijo de Judas. Em permanente evolução, há na obra de Maria Antónia, que acompanha a cultura dos anos sessenta, uma procura de ideia de futuro alimentada por viagens – França, Itália, Marrocos, Inglaterra-; pela filosofia de Teilhard de Chardin ou pelo cinema de Visconti, Godard, Bergman e Francisco Rosi. Admiramos num outro núcleo da exposição, os desenhos bordados por Tótó: o centro de mesa monogramado para Laura Soutinho e o monograma para a colcha de Cecília e Rogério Cavaca, em que o R e o C se entrelaçam num coração. Em ambos os trabalhos, realizados por volta de 1968, apenas a cor vermelha é privilegiada e acolhida – como em toda a sua produção têxtil – o mesmo tom sanguíneo que reencontramos no imaginário grotesco que carateriza a fase final da carreira da artista. O traço negro, leve e elegante transita para a linha mais espessa, colorida, violenta e expressiva em seres densos e disformes desenhados a aguarela, figuras assombradas por uma espécie de mal que parece vir de dentro de si mesmas, como se no seu próprio corpo a artista pressentisse já uma aguda consciência da morte próxima[6]. Na presença destes corpos expressivos, violentos e dramáticos, rostos cujos e olhos parecem fitar-nos, mesmo quando representados de perfil, ouvimos os acordes jazzísticos de Dave Brubeck e mergulhamos num momento de introspeção e de sonho ao mesmo tempo que Maria Antónia nos confidencia, num excerto 1967 transcrito na parede: Comprei um disco de Brubeck que é bom demais…chama-se Time Out e leva-me às nuvens.

A exposição, Maria Antónia Leite Siza, 50 Anos Depois está patente na Biblioteca Museu em Serralves até março de 2023.

 

 

 

[1] Exposição organizada pela Fundação de Serralves, com curadoria do arquiteto António Choupina, coordenação de Sónia Oliveira e mecenato de Sónia e António Coutinhas, apresenta-se patente na Biblioteca de Serralves, de 8 de setembro 2022 a março 2023.

[2] Citação da intervenção de António Choupina durante a apresentação da exposição à imprensa no dia 7 de setembro de 2022.

[3] A exposição apresentou interações póstumas no Porto (2002); Madrid (2005); Zagreb (2016); Berlim e Lisboa (2019), na Fundação Calouste Gulbenkian.

[4] SIZA VIEIRA, Álvaro – “50 Anos Depois” in Maria Antónia Leite Siza: 50 Anos Depois. Porto: Fundação de Serralves, 2022, p.9.

[5] Citação da intervenção de Siza Vieira durante a apresentação da exposição à imprensa, no dia 7 de setembro 2022.

[6] ALMEIDA, Bernardo Pinto de – “Sombras” in Maria Antónia Siza 1940-1973: desenhos. Porto: Árvore, Asa: 2002, p.186.

Mafalda Teixeira mestre em História de Arte, Património e Cultura Visual pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estagiou e trabalhou no departamento de Exposições Temporárias do Museu d'Art Contemporani de Barcelona. Durante o mestrado realiza um estágio curricular na área de produção da Galeria Municipal do Porto. Atualmente dedica-se à investigação no âmbito da História da Arte Moderna e Contemporânea, e à publicação de artigos científicos.

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