Agarrar o que não vejo, de Paula Prates
O que vemos do que não está lá?
Quando os eventos mais marcantes das nossas vidas ocorrem, muitas das vezes podemos nos esquecer de que algo de relevante possa sequer ter acontecido, caso não utilizemos de artifícios para registarmos o que outrora fora presente.
Na maior porção da nossa existência, não contabilizamos aquilo que conversámos, ou vemos, até mesmo o que pensamos em dispositivos pensados para a posteridade.
Costume este que se tornou cada vez mais constante com o decorrer da nossa História, que passou a ser apontada por pequenas estórias, como as marcas do vento responsáveis pela erosão de uma grande rocha milenar.
Um evento pode ser registado de diversas formas. Umas mais poéticas que outras, a depender do média escolhido. Como por exemplo, o mesmo evento pode ser contado de maneira formal e imparcial por um jornal local, ou pode ser eternizado através das palavras entoadas pela melodia de uma música.
Este é o caso do assassinato do artista plástico e militante antifascista José Dias Coelho, que fora organizado pela PIDE no ano de 1961 em Alcântara. Todas as emoções daquele evento trágico foram – e ainda são entoadas por milhares, através da música de Zeca Afonso A morte saiu à rua em louvor a um dos grandes símbolos de resistência à mais longa ditadura da Europa do século XX.
Muitos de nós ainda não éramos nascidos quando a sociedade portuguesa vivia sob o regime salazarista, no entanto, conhecemo-la através das histórias que nos alcançam. Sejam elas fidedignas ou não, as emoções do passado podem ser sentidas pelos nossos olhos do presente. Uma vez que, ao contrário do que proferem as leis da ótica, muitas vezes podemos ver sim o que lá não está. Através das emoções, sentimentos e histórias contadas e sedimentadas por pequenos ícones que nos remetem ao que já passou.
Este é o caso da exposição individual Agarrar o que não vejo, de Paula Prates, com a curadoria de Ricardo Escarduça, patente até o dia 12 de novembro na Galeria da Biblioteca de Alcântara, localizada no número 26 da Rua José Dias Coelho.
Uma biblioteca pública é um dos maiores ícones da cidadania moderna, que foram largamente implementadas ao redor do globo graças à noção da importância em proteger o conhecimento coletivo, e todas as histórias que não presenciamos.
Paula Prates é uma artista nascida em Almada no ano de 1975, que tem como o seu interesse investigativo, “o fascínio pelos fenómenos científicos de cariz natural”[1], observados tanto no campo da mineralogia quanto da geologia. O conceito de ruína também permeia a sua práxis artística no que tange a apreciação dos vestígios, da imagem de fragmentos, da dissolução e da clivagem.
As suas referências utilizadas são, de acordo com a artista, maioritariamente fotografias de rochas e minerais feitas pela própria em momentos anteriores. Após a conclusão deste primeiro registo, as imagens são selecionadas de acordo com o que será mais pertinente para o seu processo de trabalho. Segundo Prates, interessam-lhe tanto as micro-histórias quanto as macro, desde pequenas fissuras até o plano cromático de um dado mineral podem ser contemplados. Que se projetam sobre o papel numa “tridimensionalidade imaginária”[2].
Na pequena sala dedicada à Agarrar o que não vejo, exibem-se 50 exemplares de aguarelas de Paula Prates. De dimensões, formas e naturezas variadas, a mostra reúne três séries distintas, nomeadamente a Série Trama Viva (2022), Espaço para o Silêncio (2022) e Mapeamento (2021-2022) exibidas num único suporte de madeira localizado no centro da sala. Apesar das obras não estarem resguardadas por molduras individuais, há uma estrutura de madeira que age como um grande suporte coletivo. O que permite ao visitante estar imerso nas aguarelas tridimensionais de Prates, criando uma relação corporal com as peças, uma vez que graças a estrutura, pode andar e estar mais próximo das peças. No entanto, sente-se a falta de um peso maior no que tange a valorização das obras em si por um suporte mais rijo, embora considere-se o desejo curatorial em promover uma relação invulgar e mais imersiva entre espectador e as obras expostas.
Cada Série, da sua maneira, provoca reações distintas no espectador ao mesmo tempo em que partilham o mesmo viés intencional, buscar no seu interior evocar a natureza da sua inspiração inicial. As peças da Série Espaço para o silêncio (2021-2022). proporcionam traços que deambulam entre a força e o preenchimento do espaço, em contraste com a leveza da pincelada da aguarela; a relação entre o tudo e o nada. Num esforço de criar no visitante um entendimento daquilo que a inspiração outrora fora, e agora existe numa memória assente na ilusão da tridimensionalidade de uma folha de papel. Como uma ruína perdida no palácio da memória.
Trama Viva (2022) por outro lado, propõe um outro género de experiência estética. Não daquilo que existe no limiar do tudo e do nada, como em Espaço para o silêncio (2022). Mas sim, daquilo que encarrega a possibilidade de uma memória ser. As infinitas possibilidades da nossa memória. Perpetuamente destinadas a estarem vivas, e condenadas ao dinamismo do exercício do tempo, ao mesmo tempo em que se enclausuram na quietude do corpo físico.
Já Mapeamento (2021-2022) traz consigo todo o peso da matéria da inspiração que jaz na folha de papel o seu excedente. Se olharmos menos atentos podemos quase ver a sua corporalidade escultórica. Uma experiência visual que deslumbra os sentidos.
Agarrar o que não vejo, é uma mostra que conta com o testemunho do tempo de Paula Prates, e o ato de tornar visível a dinâmica inerente a toda quietude. Reverbera sobre todos os ícones que no seu silêncio transportam-nos a sentir o fulgor das histórias que não podem ser vistas agora. É o testemunho das rochas milenares, dos nomes das ruas, dos livros da biblioteca. São a materialização do invisível e do calor das chamas que ali já arderam.
O registo do outrora, ou das suas potências em ser.
[1] Museu Nacional de Arte Contemporânea. (2021, 25 de agosto). Paula Prates [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=eyvj0cCcB68
[2] Ibidem, 2021