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Nuno Nunes-Ferreira, Monsieur Valadares na Balcony

Nuno Nunes-Ferreira, apresenta a exposição Monsieur Valadares, na galeria Balcony, em Lisboa.

Segundo Nunes-Ferreira a exposição é o resultado de um trabalho enérgico que o artista realizou, durante meses, em torno de um arquivo extenso, de milhares de artigos e recortes, que lhe chegou às mãos, e que foram reunidos por uma pessoa que não chegou a conhecer.

Nunes-Ferreira resolveu dar o nome de Monsieur Valadares ao arquivo.

Segundo o artista o arquivo pertencia a uma pessoa que passou toda uma vida a arquivar, com disciplina tácita, artigos de jornais, e revistas, segundo uma ordem rigorosa de temas e subtemas.

Na exposição podemos ver as várias formas como o artista utiliza o arquivo: Destaca páginas de jornais e cobre-as de negro, deixando algumas palavras soltas, ou datas. Fotografa as palavras escritas à mão, pelo anterior proprietário do arquivo, e cria um vídeo onde podemos ver a sequência infinita de temas e subtemas. Aproveita o número incomensurável de separadores que existiam, e forma um monte, multicolor, colocando-o, fixo, sobre a parede.

Apresenta um vídeo cujo conteúdo evidencia uma sequência de imagens associadas a conflitos mundiais. Posiciona os arquivadores, que, entretanto, esvaziou, sobre o solo, conferindo um efeito policromático.

O artista revela-nos temas que apresentam uma aproximação ao mundo, às grandes questões, tanto na arte, como na sociedade e na política. É essa aproximação, e consciência aguda face às problemáticas internacionais, que o artista convida a uma reflexão sobre a arte, e o seu discurso.

Na obra de Walter Benjamin, A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutividade Técnica, o autor cita Paul Valéry, e refere que vivíamos uma época em que já não podíamos “subtrair-nos ao conhecimento e potência modernos”. As páginas de jornal que se sucedem no vídeo de Nuno Nunes-Ferreira, algumas delas repetições de uma mesma notícia mas publicadas em páginas de jornais diferentes, reforçam essa permanente urgência em documentar, registar, comparar, os acontecimentos e avaliar criticamente a condição do mundo na actualidade. O vídeo de Nunes-Ferreira revela uma inquietante amostra da condição humana, e das tensões sociais e políticas, que se acumulam, e tendem a demonstrar-nos que, apesar de se manifestarem ininterruptamente, parecem não ter resolução possível. Nas páginas de revistas fotografadas, e exibidas no vídeo do artista, a história repete-se, as notícias perfilam-se, mas o que varia, afinal, é a tinta que escorre, ao escrevê-las, a cor da página onde decorre a notícia, e o lay out das diferentes revistas. Ao fim ao cabo, somos todos espectadores dessa sequência de imagens muitas vezes sangrenta, mas seguimos incrédulos, e por vezes impotentes, para pensar até, de modo concreto, numa estratégia que mude de facto alguma coisa.

Por esse motivo as imagens sucedem-se. Recortes anunciam a mesma notícia, e fazem de nós espectadores de variantes de formas (gráficas), mas não de conteúdos.

O extenso arquivo que o artista tomou posse permitiu, mais uma vez, pela riqueza de elementos, que os temas constrangedores da sociedade, fossem abordados e colocados, diante dos nossos olhos, de forma clara.

Na era da reprodutividade técnica, as imagens passaram a originar-se em maior número, e a sua (re)produção, com o advento da fotografia, tornou-se muito mais rápida. A mão, como Benjamin falava, “libertou-se das mais importantes obrigações artísticas no processo de reprodução de imagens (…) O processo de reprodução de imagens foi tão extraordinariamente acelerado que pode colocar-se a par da fala”. E é essa rapidez na fala que, tornado possível pelo longo e extenso arquivo temático disponibilizado ao artista, Nuno Nunes-Ferreira construiu um discurso onde, através de uma profusão de imagens e textos, é possível levar ao espaço da galeria, e ao próprio espaço da arte, o debate em torno de desigualdades, da condição social do mundo, assim como o estado da própria arte.

Desse modo, fundem-se dois temas caros à arte da atualidade, não só a condição da arte e o papel do artista, no seio da sociedade, como a situação política mundial extrema que nos afeta a todos, e se repercute, hoje, em todas as dimensões das nossas vidas. Cabe por isso às artes, a nível global, como meio naturalmente privilegiado de expressão, revelar as lacunas existentes que, em sociedade, certos mecanismos, designados para harmonizar as questões sociais, falharam em cumprir.

Por um lado o artista propõe uma ativação dessa dimensão reprodutiva da arte, que conduziu ao aviltamento da aura da obra de arte, (conforme o vídeo e o arquivo demonstram, ao conter por um lado, notícias que se repetem, do mundo, por outro, à menção de obras de arte) por outro lado parece empreender em recuperar essa mesma aura, como aparentam manifestar os quadros pintados a negro sobre páginas de revistas. E consequentemente a sua perenidade, a propriedade de presença física, ou, por outras palavras, pelo menos a ideia de que a obra é única.

Os quadros de Nunes-Ferreira, cobertos primeiro por páginas de notícias, e depois por uma camada espessa, e opaca, de tinta negra, deixam entrever uma palavra, um título, uma data. Pouco mais.

Recuperam um pouco da aura, do mistério e do assombro da obra, na sua magia, na sua singularidade.

Uma parede à direita, logo à entrada da galeria, está coberta totalmente por estes quadros.

O detalhe e a ordem com que foram dispostos sobre a parede induzem a um ritmo mas também a uma sensação de desconforto. O modo como as páginas dos artigos surgem cobertas, e a cor usada, não dão margem para um deleite ou repouso para a vista, mas antes provocam um certo incómodo. O que pretenderá o artista sugerir? A ação corrosiva do tempo? A morte compassada dos dias? Cada quadro coberto de tinta representa a impossibilidade de poder receber o conhecimento existente sob a camada negra que cobre os textos. Essa camada retira o sentido às palavras, ou fornece-lhes outros sentidos. Quererá o artista conduzir-nos a um debate sobre a condição da arte? Fala-se em arte, e interroga-se sobre a sua função nos nossos dias. Deve o artista comprometer-se com a política?

Nos quadros a negro há palavras que resistiram à ação censora do negro. Palavras como “O Tríptico”, em diferentes línguas, ou títulos como “Pintado de Fresco”, “Saber olhar para um quadro”, “Um quadro roubado três vezes”, “Les Énigmes de L’Art”, “Isto é Magritte”, “A preguiça como obra de arte”, “Sem título”, “Plus Noir que Noir”, “Irritou os críticos”, “O que se passa com a escultura?”, “Un Tintoret en Devenir”, “Um quadro Negro”, “Naturezas-Mortas”, “Naturezas Vivas”, “Mau Gosto”, “Isto é arte”, entre muitos outros títulos, arrastam inevitavelmente o visitante para uma reflexão mais profunda sobre a arte. Poder-se-ia, até, talvez, passar os dias a tentar elaborar conexões e relações conceptuais entre as frases.

Outras instalações do artista na galeria conduzem a esse confronto com a ideia de tempo, que se esvazia, para tornar a preencher depois com outros sentidos. Na cave da galeria encontramos os arquivadores, estes já vazios, dispostos sequencialmente, ao longo do solo, num dos espaços esconsos. Conservam, nas lombadas, os títulos que o proprietário original do arquivo, escreveu nos arquivadores. Alguns, amarelecidos pelo tempo, revelam títulos escritos com cuidado, outros, apresentam-se com uma letra mais apressada. São caixas, que se sucedem, de cores diferentes, resultando numa policromia variada.

Monsieur Valadares de Nuno Nunes-Ferreira, está patente na Balcony até 12 de novembro.

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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