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Do grego, heteróklitos

Em 1935, Walter Benjamin observa que, quando a “arte se encontrava ao serviço religioso, a igreja seria como uma espécie de galeria”, ao passo que, “hoje, a galeria se encontra num espaço entre uma igreja e o cofre de um banco”.[1]

É nesta base que o ensaio expositivo de Heteróclitos: 1128 Objetos, que marca o 10º aniversário do CIAJG, procurou desconstruir a instituição museológica com a mostra total do acervo de José Guimarães, em diálogo com arte contemporânea, através do debate entre “linguagem, objeto, sujeito e política”. “Heteróclito” representa aquilo que é “excêntrico, irregular, fora do comum”, ilustrando a construção do “que é dissonante entre si”[2] e que, todavia, demonstra o processo de reconstrução e/ou “recombinação”[3] da narrativa, elaborando um ato criativo e reflexivo.

Esta noção é destacada pelo “trânsito” e “tempo” dos objetos de Arte Africana, Pré-Colombiana e Chinesa que funcionam como um “Atlas, aproximando e relacionando objetos, imagens, ideias e culturas”.[4] O estudo desta teia de relações e consequente criação de significados, constrói uma estrutura que dialoga entre a coleção e as obras contemporâneas, redefinindo o “eu” e o “outro” e consentindo a experiência de diferentes modos de viver, como forma de reescrever a linguagem museológica, questionando os seus processos de seleção e exclusão. A montagem experimental procura amplificar o significado de “heteróclito”, salientando a interação entre o método curatorial e as obras, ilustrando um “outro” modo de fazer, uma “inversão” do ato curatorial.

Integrado no programa expositivo, foi criado um outro ensaio que dá corpo ao debate entre linguagem, sujeito e política, de nome Protótipo Heteróclito e da autoria de André Tavares e Ivo Martins. Este protótipo parte do “potencial de «projetar» e «fazer» da arquitetura para estabelecer diálogos no campo da história da arte, da arte contemporânea, da antropologia, da filosofia, etc.”, criando uma “plataforma de negociação entre modos discursivos” e que procura “estimular a observação, fruição, e vitalidade dos objetos artísticos”.[5] No seu âmago, Protótipo Heteróclito pensa esteticamente as relações entre objetos, pessoas, ideias e estruturas, enfatizando as influências heteróclitas dos objetos e a luta de identidades em que os próprios elementos se alimentam uns dos outros. Permanece aqui a tensão entre o dinamismo histórico e social dos objetos, cuja produção e apreciação tem sofrido mudanças significativas, em particular pelo modo como são interpretados, que se manifesta, de forma problemática, como estando fora do seu tempo ou da sua história. Este processo pode ter vários efeitos, desde logo na criação de um sistema fechado de significados e significantes que gera um padrão de representatividade e molda as práticas da criação, circulação e coleção. De facto, quando considerada a diversidade artística, social, cultural e histórica dos objetos, pouco parece restar para falar dos seus pontos em comum para além do olhar colecionista e curatorial, que se prende não só na necessidade de criar uma estrutura sem um fim definido, mas também no processo que permita refazer cada associação individualmente ou “recombinar” os objetos de múltiplas formas.

É na base deste conceito que surgem as exposições Things in Motion e Atirando Pedras que, juntamente com Heteróclitos: 1128 Objetos, ocupam a totalidade do primeiro piso. Things in Motion constrói um diálogo através de um arquivo de imagens que evidencia a construção de uma mise en abyme,[6] através da interceção de referências da etnografia, arte contemporânea, colonialismo, cinema, etc. revelando e problematizando o ato de expor, mas também remetendo para a própria vida dos objetos.

Things in Motion conta com a presença de filmes de Darks Miranda, Mariana Caló e Francisco Queimadela, Pedro Huet, Sara Santos e alguns vídeos pertencentes ao acervo de José Guimarães. As imagens do acervo remetem para exposições históricas que moldaram a permanência de um “inconsciente” colonial, através da ritualização dos objetos representados, por oposição aos seus valores “artísticos” e que, através das obras contemporâneas, constroem um comentário à “ação dramática que se desenrola nas várias salas”.[7]

De entre as várias obras, Croma, 2020, de Pedro Huet, que através da projeção de uma jarra verde, arredondada e com tampa, ilustra per si um repositório de histórias, narrativas e memórias relatadas pela e para a exposição, figurando uma capacidade aglutinadora que se camufla naquilo que ela própria representa, sendo substituída por aquilo que aglomera. Para Huet esta relação entre discursos de poder e as suas imagéticas, através de tramas narrativas, procura cruzar dimensões de análise crítica ao ser humano, que rememora as histórias sem as ter vivido, colocando o “eu” no papel do “outro”.

É com Sombra Luminosa, 2018, que Mariana Caló e Francisco Queimadela fazem uso de uma linguagem experimental e mediúnica, manipulada através de imagens e sons provenientes de exposições, catálogos e conversas que tiveram lugar no CIAJG. A dupla provoca recombinações, contextos e origens, construindo uma ponte entre o biológico, o vernacular e o cultural, através de uma linguagem que interroga a própria vida dos objetos, a sua “disfuncionalidade e captura, remetendo para exposições históricas que moldaram a permanência de um “inconsciente” colonial”[8], através do contexto do objeto, ao invés do seu valor estético. É notório que, aceitar esta condição da transição enquanto transformação implica reconhecer a inevitabilidade desta alteração independentemente de uma condição evolutiva, uma vez que não existe hierarquia e não recorre a uma autoridade lógica.

Por fim, Atirando Pedras, com Sara Ramo, ilustra os sentimentos contraditórios presentes nas instalações da artista, através da alusão ao que fere, ao que é incerto, o que invalida e o que torce a linguagem. A exposição convida o espectador a criar as suas próprias conexões entre os objetos, unindo pontos que compõem um vocabulário poético/político e que comentam, indiretamente, o mundo e a linguagem que o nomeia. O seu trabalho é invadido por uma tomada de posição contra um certo conhecimento hegemónico e contra as opressões que o mesmo produz, porém, não é proveniente de uma moral, mas do aspeto tortuoso, “falhado” e indeciso dos volumes e materiais. O que, compõe uma linguagem, ou incompreensível, ou de associação imediata que, para além do discurso repetitivo das diferenças, da multiplicidade e das misturas pós-modernas, expõe a noção de um substrato comum, demonstrado pelo exercício curatorial, recriando o raciocínio redutor que predomina a prática artística e que confunde a “diferença” com o “inusitado”.

Em suma, os ensaios expositivos do CIAJG evidenciam a aquisição e divulgação de conhecimento refletor da natureza dialógica e processual do encontro etnográfico, criando uma permuta dinâmica entre memórias, sonhos, visões e histórias, explicitando aspetos da realidade social que permanecem invisíveis e, no qual, a produção artística, baseada na etnografia, remete para conhecimento mútuo e reflexivo. O que proporciona uma comunicação sensorial, experiencial e corpórea, envolvendo o público de forma inclusiva, abrindo a possibilidade para a renovação social e reivindicação política, “dando voz e alma a sujeitos geralmente passivos e silenciados, que não contam as suas próprias histórias e que vivem somente da reprodução que deles é feita”.[9]

Heteróclitos: 1128 Objetos, Things in Motion e Atirando Pedras estão patentes no CIAJG até 26 de fevereiro de 2023.

 

 

 

[1] Walter Benjamin, in Benjamin, Walter, 1969, orig. 1935. The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction, Illuminations, in Hannah Arendt, trad. por Harry Zohn, New York: Schocken Books, pp. 3-5.

[2] Marta Mestre, in Guia de exposição Heteróclitos: 1128 Objetos, 2022, Centro Internacional de Artes José Guimarães, p. 3.

[3] Jacques Ranciere, “Dialectical Montage, Symbolic Montage”, in Ranciere, Jacques, 2009 The Future of the Image, London: Verso, pp. 56-67.

[4] In https://www.ciajg.pt/detail-eventos/todo-o-ano-or-ciajg-colecao-permanente/

[5] Marta Mestre, in Ibid, p. 5.

[6] André Gide, in, Gide, André, 1993, Journal 1889-1939, Paris: Gallimard, “Pléiade”, p. 41.

[7] Marta Mestre, in Ibid.

[8] In Ibid, p. 14.

[9] Pussetti, Chiara, in Nenhuma ferida fala por si mesma. Sofrimento e estratégias de cura dos imigrantes por meio de práticas de ethnography-based art, 2016, Interface – Comunicação, Saúde, Educação, 20(58), p.817.

José Pedro Ralha (Chaves, 1994) é licenciado em História da Arte com especialização em Filosofia da Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Estudos Curatoriais, com a dissertação "A Instalação Artística através da obra de João Maria Gusmão e Pedro Paiva: Análise às obras 3 Suns, Falling Trees e Papagaio (djambi)", pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Colaborou em vários projetos como LAND.FILL, 2019, com Gabriela Albergaria para o Laboratório de Curadoria, Anozero '19 Bienal de Coimbra - A Terceira Margem, Terçolho, 2021, com João Maria Gusmão e Pedro Paiva, na Fundação de Serralves. Colaborou com a Fundação de Serralves e contribui com artigos e ensaios para a Umbigo Magazine. Atualmente trabalha no Museu e Bibliotecas do Porto como Produtor Executivo de Projetos Museológicos.

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