Arde
Miguel De (Ovar, 1992) tem vindo a desenvolver um corpo de trabalho, maioritariamente em fotografia e vídeo, em torno de questões de representação do corpo desafiando questões de género e sexualidade e, focando-se especialmente no corpo masculino e gay. Na representação desses corpos o artista sugere, tensiona e problematiza assunções tradicionais da identidade gay, através do desejo, sexo e dos códigos impostos pela própria comunidade. Arde a sua nova série fotográfica é o foco central para esta conversa.
João Mourão – Comecemos esta conversa sem capacete, isto é, sem proteção. Gostaria muito que fosse uma forma de estarmos neste diálogo. A entrada num quartel de bombeiros que afinal é um set de um filme para um artista queer vem carregado de pré-conceitos. Mas antes de entrarmos numa conversa sobre fetichização, ideias de masculinidade e representação de corpos gostaria que nos desses um pouco do contexto do Arde, uma série que desenvolves a partir e com Fogo-Fátuo o novo filme de João Pedro Rodrigues.
Miguel De – A série fotográfica Arde resulta de um convite da produção do filme do João Pedro para eu estar na rodagem, de uma forma completamente livre, e fotografar o que bem entendesse. Podia ser a tradicional fotografia de cena ou qualquer outra coisa. Enquanto artista, o que me interessou nesta oportunidade foi poder, de uma certa forma, e consentida, apropriar-me do universo do filme, dos seus décors, dos seus actores, dos seus temas, para continuar o meu trabalho com uma abordagem nova. Os meus trabalhos anteriores já versavam sobre temas como a masculinidade, a homossexualidade e o corpo, pelo que esta simbiose entre o filme do João Pedro e o que eu poderia criar era boa demais para não aproveitar
JM – O teu trabalho, como dizes, tem olhado para homens. Existe nele, a meu ver e tu me dirás se concordas, uma câmara que deseja, que mais não será que o teu próprio desejo. Pensando desta forma poderíamos recentrar aqui o desejo para um lugar que te é dado à priori, isto é, que te é externo no sentido em que é definido por outros. De uma forma mais direta como achas que pode uma série como esta viver para além do filme? E como foi trabalhar com a pré-existência, apesar da liberdade que te foi dada? Como se encontra esse desejo que me parece a ignição de muito do teu trabalho?
MD – De facto, o desejo está bastante presente no meu trabalho. Penso nele como um dos estímulos que me faz fotografar. Fotografo o que me fascina, mas também o que desejo. Neste caso concreto, caio num lugar e num contexto que não tive qualquer controlo ou decisão, pelo que é só depois disso que começa o meu trabalho. A série existe por causa do filme, mas acredito que não agarrada ao filme. Aliás, interessa-me mais o olhar de alguém que não conhece ou não tenha visto o filme, porque irá interpretar as imagens de uma forma distinta. A série não está construída de forma a contar a história do filme, porque isso o filme já faz. Em certa medida, a minha câmara, o meu olhar, vagueiam e flutuam sobre e entre os elementos do filme, mas de alguma forma descontextualizados da sua narrativa, pelo que as imagens ganham novos significados. E isso, para mim, foi desafiante, porque eu sei, e as pessoas mais tarde ou mais cedo também sabem, que os locais, os objectos, as figuras humanas, nada disso foi decidido por mim, mas eu tenho a autonomia de escolher o que fotografar e como fotografar. No fundo, não é muito diferente da realidade, do quotidiano: eu não escolho as pessoas que passam na rua, ou os objectos que foram deitados ao chão. Eu encontro-os e fotografo-os. Aqui é a mesma coisa. Há muita coisa que eu não fotografei, ou que fotografei, mas não está na série. O meu método de trabalho não foi muito diferente do que é normalmente: encontro algo ou alguém que me chama a atenção, que desejo, estudo-o e decido a imagem que quero fazer. E faço-a. Esse desejo não é propriamente sexual, mas é necessariamente erótico. Há uma urgência em fixar essa imagem que vejo numa fotografia, porque eu sei que ela vai deixar de existir. E eu desejo que ela exista para sempre. Voltando ao início da tua questão, em relação aos homens que fotografo, penso que seja a mesma coisa: no fundo, e quase inconscientemente, sei que esses corpos vão deixar de existir, ou pelo menos vão desaparecer da minha vida, ou do meu quotidiano, e desejo vê-los e estudá-los. Então fotografo-os. Se calhar é por isso que praticamente não tenho imagens dos meus amigos e familiares próximos.
JM – Essa ideia dos corpos desaparecerem, ou deixarem de existir na tua vida, tem algo de trágico ou, melhor de descartável (sem qualquer tipo de julgamento moral, como é óbvio). A sociedade de consumo que devora corpos como devora um alimento qualquer. Aliás, muito do teu trabalho prende-se com esses códigos da representação do corpo masculino enquanto uma imagem imposta de beleza na comunidade gay, exemplo disso seria a série Masc, mas também algumas das imagens desta série. Como saímos ou problematizamos estas imagens? Como criamos nuances nessa performance do corpo perfeito? Isto leva-nos também à fetichização da farda na comunidade gay, neste caso o bombeiro, que é talvez uma nova porta de entrada no teu trabalho.
MD – O meu primeiro trabalho, que resultou num livro, Conhecer um Corpo, é sobretudo sobre corpos e espaços que existem e deixam de existir. Não sei se usaria a palavra descartável porque associo-a a uma ideia de usar e deitar fora sem qualquer repercussão emocional. E ela existe: há uma sensação de solidão e melancolia que atravessa as imagens e que pode ser resultado desse desaparecimento. Tem-se repescado ultimamente a ideia da melancolia das sociedades da Arendt, que é uma extrapolação dessa melancolia individual, um limbo entre o estar bem e a depressão que me fascina intensamente. Que é, no fundo, uma das consequências de uma sociedade individualista, de consumo e que vive crescentemente de imagens. Estamos assoberbados delas, mas parecem todas iguais. E é importante, como dizes, sairmos delas e problematizá-las.
Existe um duelo dentro da minha cabeça entre aquilo que são as imagens impostas de beleza corporal e a realidade do que vemos em frente ao espelho, que vai muito para além do desejo no outro. Não é só quem se quer, mas também como se quer ser. Uso o meu trabalho artístico também para me tentar desprender de algumas obsessões que foram criadas na minha adolescência. Acredito que exista uma correlação entre o corpo masculino musculado e a conformação a uma heterossexualidade assimilada. Ou seja, enquanto criança e adolescente que não entende a homossexualidade, que acha que é apenas uma fase e está em negação, a ligação que tradicionalmente se faz entre a homossexualidade e o feminino faz com que se crie esta inconsciência de que se se apresentar o mais tradicionalmente masculino possível (e um homem musculado é tradicionalmente mais masculino que um homem franzino ou gordo), que se deixa de se ser homossexual. Este é um argumento que está obviamente cheio de buracos, mas existia na minha cabeça quando era miúdo. E existia porque os media estão constantemente a atirar-nos essas imagens para os olhos, porque são esses os corpos que vendem, que são sexualizados e mercantilizados. É dado valor capital a esses corpos e retirados aos outros. E a assimilação completa, o descanso mental, aquele suspiro de alívio, está nesses corpos: “basta eu ser assim, ter um corpo daqueles, e serei normal e feliz”. É muito difícil livrarmo-nos desta opressão e aceitarmos em pleno os nossos corpos na sua diversidade infinita. Acho que é por isso que os corpos que vês na série Masc são aqueles: são os corpos das pessoas que responderam à open call, que olharam para os seus próprios corpos e disseram “és digno de ser fotografado”.
A fetichização da farda também tem a ver com isto, com este desejo ardente pela hipermasculinidade. Na minha dissertação de mestrado, que acompanha a série Masc, citei dois autores que discordavam quanto à erotização da figura do machão hetero dos anos 70 pelo chamado clone gay (ou Castro clone). Um dizia que essa apropriação era uma subversão, o outro dizia que era desejo puro e duro. Penso que existam as duas variantes, mas acredito que grande parte dessa fetichização venha de um fundo problemático de ânsia pelo hipermasculino, pelo inalcançável, pela figura de autoridade que não temos nem somos. É isso também que achei interessante no Fogo-Fátuo e em toda a experiência de fotografar a série Arde: o lado fetichista está lá, mas não é óbvio e não lhe é dada tanta importância. Não se cai no mesmo de erotizar o bombeiro machão musculado, porque de repente o bombeiro dança, mostra-se vulnerável. E sobretudo não são só homens musculados. Há de tudo.