Um enorme passado pela frente na Plataforma Revólver
Alguns aforismos ditos por personalidades no decorrer da nossa história civilizatória, tornaram-se tão sólidos que chegaram ao ponto de sedimentaram-se enquanto as suas pedras fundadoras, ou, de uma maneira mais simples, como as frases que moldaram o estaria por vir – como o célebre “conhece-te a ti mesmo” provavelmente dito por Sócrates no século VI a.C. Facto é que alguns anos mais tarde, em meados dos anos 70 no Brasil, Millôr Fernandes, cartunista opositor à Ditadura Militar proferiu aquilo que, apesar de não ser uma pedra fundadora, é encarado como um ponto chave na perceção da própria história do Brasil. Naquela ocasião, segundo Millôr, o país teria ainda “um enorme passado pela frente”.
Frase esta que é também o título da exposição inaugurada na Plataforma Revólver no final de setembro e que estará patente até ao dia 05 de novembro na cidade de Lisboa.
No último dia 16 de outubro, tive o prazer de realizar uma conversa exclusiva com a curadora da exposição, Cristiana Tejo, a propósito daquela que promete ser um ponto de inflexão e reflexão sobre um tema que sempre é varrido para debaixo do tapete lusófono: a responsabilidade e a identidade colonial.
Cristiana Tejo é uma curadora independente e também doutorada em Sociologia (UFPE). Foi também investigadora no projeto Artists and Radical Education in Latin America: 1960s and 1970s financiado pela FCT, além de membro integrado do Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa. Destacam-se a sua co-curadoria do 32º Panorama da Arte Brasileira do MAM – SP, com Cauê Alves, em 2011. Tejo, também foi a curadora da Sala Especial Paulo Bruscky na X Bienal de Havana. Neste ano de 2022, retomou a posição de co-curadora da 37ª edição do Panorama da Arte Brasileira: “Sob as Cinzas, Brasa”.
A sua trajetória é marcada pela difusão da produção periférica, também pela profissionalização do artista e pelo intercâmbio entre os agentes da arte das diferentes regiões do Brasil e do mundo. Segundo Cristiana, o convite para realizar a mostra surgiu através de uma conversa com Victor Pinto da Fonseca, proprietário do edifício Transboavista e das galerias VPF cream art e da Plataforma Revólver, onde se realiza a exposição.
Um enorme passado pela frente deu-se enquanto a materialização da sua paixão em investigar as consequências diretas do passado colonial português e as suas relações presentes na sociedade brasileira atual. A exposição coletiva congrega nas cinco salas da Plataforma Revólver, as obras dos artistas brasileiros Denilson Banana, Jonathas de Andrade, Laryssa Machada, Lyz Parayso, Maré de Matos, Mariana Lacerda & Joana Paraíso, Pablo Lobato e Yuri Firmeza.
Todas as peças expostas foram pensadas, de acordo com Cristiana, para situar-se em posições estratégicas nas salas. De forma que as obras realizassem pequenas narrativas entre si enquanto estivessem imersas numa única grande história. Esta grande história começou a ser contada há 522 anos, a partir da chegada dos portugueses no continente americano. Que, como toda história passada de geração em geração, invariavelmente sofreu com as mudanças provocadas pelos seus interlocutores.
O interessante de perceber quais são as funções determinadas pelos narradores das histórias, é também entender como os personagens se comportam em relação aos seus papéis designados.
Até ao século passado, o controlo desta grande narrativa assentava na mão dos que vieram da água, ao invés dos nascidos na terra encarnada como brasa. Facto este que moldou a perceção da identidade brasileira pelos próprios brasileiros, que fora afetada desde as primeiras descrições literárias do território pelos olhos dos estrangeiros. A carta de Pero Vaz de Caminha para a coroa portuguesa (1500) é o primeiro documento oficial escrito no solo do país que hoje é o Brasil.
Ali, já estava retratada a imagem do povo indígena que andava nu “sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas”, e também da natureza exuberante e pródiga que havia naquela nova terra a ser explorada.
No século XIX, a única descrição que o restante mundo tinha do Brasil era o relato de outros viajantes europeus para o território. No início da colonização, o mercado editorial português reduzia-se a momentos específicos cunhados principalmente pela expressão católica. Padre António Vieira destaca-se enquanto uma personalidade que inseriu nos seus sermões religiosos algo de descritivo acerca do território, onde ocupou a cargo da Companhia de Jesus nas suas missões catequizadoras. Segundo o historiador Jean Marcel Carvalho França, a permissão para residir no Brasil nos primeiros 100 anos da ocupação portuguesa era extremamente restrita para os outros europeus, que acabavam por não entrar em contacto com a realidade e acabavam por reproduzir os discursos de outros viajantes e religiosos que já haviam publicado sobre o território nos seus relatos anteriores[1]. Facto este que causou reproduções em massa de discurso, com falácias que se perpetuavam massivamente pelo continente europeu. Muitas destas, influenciadas pela leitura dos códigos de conduta católicos da época.
Tema este do primeiro momento da exposição Um enorme passado pela frente sobre o impacto da Igreja Católica sobre o Brasil, com as peças O Brasil deve (2017) de Maré de Matos, Bronze Revirado (2017) de Pablo Lobato e com Nada é (2014) de Yuri Firmeza. Onde grita-se com Matos, ouve-se com Lobato e imagina-se com Firmeza sobre uma presença que, segundo Cristiana Tejo, preparou o terreno do Brasil para ser cultivado posteriormente a partir da semente católica.
O processo do cultivo apresenta ainda um momento curioso, pois numa analogia com a realidade, é preciso retirar as raízes extras que não são de utilidade para a plantação. Momento presente na segunda sala, com a metáfora em contornos de ceifa na escultura de latão polido de Lyz Paraíso.
O estudo decolonial ganhou força nos últimos quarenta anos entre os teóricos e historiadores da América Latina, que procuravam através dos factos repensar a história dos seus próprios países e territórios nacionais. A partir do processo de contraposição à colonialidade, e principalmente enquanto uma vertente de pensamento que se afasta do tradicional estudo pós-colonial que, segundo o autor Walter Mignolo, ancora-se no pós-estruturalismo francês[2]. Desta forma, o famoso pós-colonialismo ainda estaria relacionado a genealogia do pensamento europeu. Vale ressaltar, que o colonialismo se entende enquanto um processo de dominação direto e formal[3], o que para muitos europeus pode determinar o assunto e a problemática que o cerca como acabado, ou passado. No entanto, a colonialidade é a permanência da estrutura colonial viva nas sociedades que estão à margem do eurocentrismo, afundadas na perpetuação dos processos de racialização e de segregação do poder.
Processos estes que podem ser vistos na vídeo-instalação O caseiro (2016) de Jonathas de Andrade. Onde, podemos enxergar a sobreposição do filme Mestre dos Apipucos (1959), que retrata a vida de Gilberto Freyre[4] com a filmagem de 2016 do personagem de um caseiro negro. Que, de acordo com Cristiana Tejo, evidencia o paralelismo entre os contrastes das questões de raça e classe. Heranças diretas do colonialismo, presentes na colonialidade dos azulejos existentes na sala de jantar do Gilberto Freyre, prendas do próprio Salazar.
Na ocasião da conversa com Tejo, coloquei a questão das crescentes vagas de imigração que Portugal tem vindo a receber. Totalizando em 2021, segundo o SEF, mais de 700 mil estrangeiros a viver no país, 30% dos quais são brasileiros. Uma vez que queria perceber mais da posição dela sobre a importância de uma exposição sobre a decolonialidade em Lisboa. Cristiana Tejo, assenta que a experiência de ser brasileiro em Portugal muitas vezes é “doída” e extremamente diferente de ser um migrante em outros países europeus. Experiência esta que se torna infinitamente mais difícil pela constante desautorização de alguns portugueses pelo uso da nossa própria língua. Facto este que é evocado na presença contínua da palavra escrita nas obras presentes na exposição Um enorme passado pela frente, num ciclo desde a primeira, passando pelo ponto médio, até a última obra da exposição, da dupla Mariana Lacerda & Joana Paraíso.
Mariana Lacerda & Joana Paraíso, autoras da obra interativa Defender a alegria, Organizar a raiva (2019 -), uma coletânea inacabada de ícones em forma de mensagens, que permitem que o visitante leve consigo para fora da exposição um lembrete de sempre estar a lutar. Como um líquen, como um voto, como uma ruína, como quem cuida, como um preso político, como quem cuida e sobretudo – comigo.
Juntos a refletir sobre o presente para repensar o nosso passado e não o propagarmos a colonialidade no nosso futuro.
Pois o colonialismo existiu, mas a colonialidade ainda existe.
E é o nosso dever reconhecê-la, para que o seu pretérito imperfeito não seja um obstáculo na frente do que está por vir.
[1] FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. A construção do Brasil no pensamento europeu dos séculos XVI, XVII e XVIII. Acervo (Rio de Janeiro), v. 24, p. 7-24, 2011.
[2] Mignolo, W. D. (2007). El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura. Un manifiesto. In S. C. Gómez & R. Grosfoguel (Orgs.), El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global (pp. 25-46). Bogotá: Siglo del Hombre Editores ; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar.
[3] Quijano, A. (1992). Colonialidad y Modernidad-racionalidad. In H. Bonillo (Org.), Los conquistados (pp. 437-449). Bogotá: Tercer Mundo Ediciones; FLACSO.
[4] Gilberto Freyre (1900-1987) foi um escritor brasileiro que se dedicou à ensaística da interpretação do Brasil sob ângulos da sociologia, antropologia e história. Mas, que romantiza os processos de violência sofridos pela população negra, no controverso Casa Grande & Senzala(1933)