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Esta Escola não é uma Ilha

  1. Vivido

Lembro-me de em criança ir muitas vezes a uma loja de brinquedos que tinha duas portas. Uma, com pouco mais de um metro de altura, e outra, de tamanho normal, para os adultos entrarem. Gostava de entrar pela porta pequena, porque se adequava à minha medida – num mundo esmagadoramente grande, aquela porta compreendia-me.

No dia 14 de outubro, no contexto do seminário Despoletar o Agir organizado pela Porta 33 para a revitalização da Escola da Vila de Porto Santo, lembrei-me desta história quando, no primeiro painel, Ainhoa Graupera, observava que este projeto arquitetónico, da autoria de Raul Chorão Ramalho, obedecia a estas características. Falava de como se abriram no edifício pequenas portas para as crianças, como também aberturas para os adultos, para que brincassem também, se envolvessem, voltassem a essa primeira, inesperada consciência do espaço, tornando-se, novamente, crianças no processo. O edifício foi mais longe na interatividade da loja de brinquedos, num gesto de empatia que abria aos adultos também a possibilidade de serem crianças – ou talvez dizendo-nos, sorrateiramente, que nunca deixaram de o ser. Esta pluralidade etária, vivencial, e a necessidade de uma reformulação de pensamento, foi o que tornou necessárias estas intervenções, conferências, exposições que se realizaram em Porto Santo, no calor destes meados de outubro – aqui todos puderam ser parte do processo. É esta a futura missão da Porta 33 – associação cultural madeirense, fundada no Funchal há mais de 30 anos, e agora orientada pelo casal Maurício Pestana Reis e Cecília Vieira de Freitas. Foi a eles que ficou incumbida a gestão e revitalização da escola a partir de 2019, após o seu fecho no ano anterior. Procuram desenhar um projeto utópico, livre, transformador, não descurando o legado de um edifício que fora espaço de ensino desde 1967, veículo de memórias, querido à comunidade. Foi este o ponto de partida para as possíveis soluções: como intervir culturalmente num espaço emblemático duma localidade sem renegar as vontades e necessidades da população que nela habita?

Algumas possíveis respostas ou prioridades neste processo, ainda em verbo, compuseram os títulos de cada um dos painéis: implicar, aprender, cuidar, incluir. O propósito foi passar-se da palavra à ação numa troca de ideias entre oradores, professores, autarcas e quem mais quisesse participar.

No primeiro dia da conferência, o processo foi mais expositivo: falaram artistas plásticos, arquitetos, professores, a maioria convidados, compreendendo possibilidades para aquela escola, baseando-se quer em projetos que desenvolveram para outros locais, como tentando compreender a envolvência e as intenções do projeto de Raul Chorão Ramalho: debateram-se dinâmicas de ensino, de que modo se poderia desconstrui-lo, caminhado para um lugar de oralidade e não-formatação, ou manter-se igual, constituindo base cimeira, nas suas vantagens e desvantagens, para o futuro dos estudantes. Seguiram-se reflexões sobre passado e futuro, o modo de articular uma experiência individual com uma aprendizagem coletiva, o potencial agregador de uma instituição escolar, o edifício na sua relação com as restantes obras de Chorão Ramalho ou como o hibridismo moderno, utópico do mesmo se espelha nas motivações deste novo projeto que nele agirá. As ideias foram criativas e reflexivas, digressões de pensamento dispares em busca de uma complementaridade alargadora, mental, que quer reformular.

Pedro Jervell mandou distribuir por todos os membros da audiência uma série de 3 inquéritos e uma receita: um inquérito à memória, outro à imaginação, outro à identidade. Neles contam perguntas/propostas como: “De que maneira a ilha seria diferente se tu não a habitasses? Lembras-te de alguma coisa que a ilha sugeria à tua imaginação de criança? Desenha de memória os limites da ilha de Porto Santo e sinaliza em que sítio vives”. Mais do que requerimentos de respostas, são convites a atuar, trabalhar, apreender eternamente. Carlos Bunga e Nicolás Paris sugeriram ideias de um futuro anterior: é na relação introspetiva ao centro do meu eu, da minha identidade, que se encontra também o centro do meu passado. Tornaram claro que para se estabelecer uma mudança, esta tem de se cimentar, também, a um nível introspetivo. Finalmente, a receita convocou um “jantar de ideias”. A primeira conferência pôde ser esse jantar, desdobrado por um dia inteiro – cada um falou das suas valências e todos, com mais ou menos atrito, foram discutindo em conjunto.

No segundo dia, numa iniciativa aberta exclusivamente a professores locais, o cenário mais intimista permitiu uma discussão mais sincera, equilibrada, pragmática. As cadeiras dos oradores saíram da mesa de conferência para se aproximarem do beiral do palco; também o público se agregou nas filas mais próximas. Ecoaram vozes de uma vontade de mudança, de uma urgência para que não deixem aquela escola para trás, e com ela o ensino na ilha – os professores locais tornaram-se mais visíveis, expondo os seus dilemas e questões a uma audiência de convidados que os escutaram. Uma professora expôs a sua sincera preocupação no lado afetivo da escola se estar a perder, e o processo de ensino caminhar para uma cada vez maior individualização. Para ela, “nesta altura ir para a escola não é uma situação de prazer”. Olharam-se possíveis soluções de dinamização do espaço, de recuperação desta afetividade num laboratório criativo que poderia ser esta nova escola: a implementação de oficinas para crianças ou a organização de sessões de cinema ao ar livre de modo a incluir a população em geral. Implicou-se, aprendeu-se, tentou-se incluir. O cuidado desdobrou-se na proteção desse passado para que se encontrasse um porvir: Nicolas Páris desencadeou um bonito exercício onde palavras sugeridas pela audiência, feitas de prioridades para aquele local, construíram uma constelação de ideias e esperanças. Tornou-se ainda mais claro que, para atingirmos uma transformação profunda, verdadeiramente necessária, é fundamental que pensemos e participemos em conjunto. O exotismo desse “pedacinho de mundo esquecido e primitivo como uma flor selvagem” que Brum do Canto descreveu de Porto Santo na sua Canção da Terra está longe de ser visto, e se calhar sempre esteve – existem aqui preocupações, necessidades que querem fazer-se ouvir. Como apontou Eduardo Jesus, o que está a ser feito por Porto Santo “não é mais do que uma obrigação”.

  1. Vívido

No antigo refeitório da Escola da Vila, ouvem-se vozes, registos sonoros de antigos alunos, agora adultos, documentando as suas vivências naquele lugar, para eles, feliz. Apresentam-se no contexto de uma exposição com a curadoria de Madalena Vidigal e Diogo Amaro, intitulada Escola da Vila: Construção de um Espaço Comum que, inteligentemente, se desdobra em maquetes sob secretárias riscadas, usadas, aqui reaproveitadas (tudo, sempre, girando à volta de uma ecologia de saberes e vivências), expondo uma cronologia do projeto arquitetónico da escola. Estão assentes em cadeiras, também elas gastas, os auscultadores onde se ouvem as vozes desse lugar passado: sentamo-nos nelas para ouvir, e o nosso olhar projeta imaginários sugeridos sobre o espaço vazio, brutalista, vívidas vivências que perduram nas memórias da comunidade porto-santense.

Agora, numa das salas de aula da escola, o arquiteto Paulo David concede uma aula aos seus alunos do mestrado de Arquitetura do Instituto Superior Técnico, que se deslocaram ali por ocasião de um projeto arquitetónico que estarão a desenvolver em Porto Santo.

Noutra sala ao lado, instalou-se uma exposição de Carolina Vieira, construída no contexto de uma residência artística na ilha. As obras espalham-se no espaço como dançarinas: no chão, nas paredes, sobre as mesas, numa acumulação de tons e possibilidades. Algumas dobram-se, segurando-se graças a pedras que lhes amparam os vincos.

Residem aqui, nestas três situações, um protótipo desse futuro que se constrói. A contemplação que as obras da Carolina poderiam sugerir num lugar branco, imparcial, torna-as aqui intervenientes, como que participando no espaço. Esta diferença reside no facto de se exporem num lugar outrora funcional, que se preserva como um vestígio. Partem de um lugar afetivo, raro a esse grau zero de frieza ou desconforto em que habitam a maioria das instituições culturais, como sublinhou, por outras palavras, Paulo Pires do Vale no segundo dia do seminário. Esse aspeto emocional, empático e sensorial do espaço, mostrou-se como o ponto nuclear nas conceções de todos os intervenientes, o diamante precioso que não se pode deitar a perder. Será algures nessa intimidade que também reside a importância da troca de ideias que aqui se efetuou – ou de qualquer outra – a procura de soluções através de uma discussão comunal e aberta. No futuro, começar-se-ão a planear projetos da parte dos artistas intervenientes neste seminário (pelo menos, Carlos Bunga e Nicolás Paris estarão já com isso em discussão), porque esta escola não é uma ilha. É, acima de tudo, um espaço de encontro, vindo da “arquitetura erudita” proclamada por Ricardo Carvalho até à “lição de honestidade” apontada por Carlos Bunga. De 14 a 15 de outubro de 2022, um lugar mental de comunhão desenhou-se em Porto Santo, como espelhamento do futuro, embrião vital para que possamos trabalhar o físico. Tantas portas em todo o lado.

O seminário Despoletar o Agir realizou-se nos dias 14 e 15 de outubro no Centro de Congressos de Porto Santo. Pode, no entanto, ser visto online no canal de Youtube da Porta 33, neste link.

Miguel Pinto (Lisboa, 2000) frequentou a licenciatura em História da Arte pela NOVA/FCSH, através da qual veio a realizar um estágio no Museu Nacional do Azulejo. Participou no projeto de investigação VESTE – Vestir a corte: traje, género e identidade(s), alojado pelo Centro de Humanidades da mesma instituição. Criou e gere o projeto a Parte da Arte, que pretende divulgar e investigar o panorama artístico em Portugal através de vídeo-ensaios explicativos.

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