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João Biscainho – Body Terminals na Chauffeur, Sydney

Quando Freud anunciou em 1929 que o homem se tinha tornado um “deus prostético”, soou com um ar de espanto ou reprovação. Agora é um truísmo. Estamos acostumados ao conceito de transplantes e partes sintéticas do corpo, a cirurgia estética já não é estigmatizada, e os smartphones são agentes integrados nas nossas personalidades e interações com os outros. A exposição de João Biscainho, Body Terminals, fala desta condição em que as partes do corpo são casualmente percebidas como destacáveis, as condições corporais modificáveis, e os estados somáticos são um subproduto da intervenção tecnológica. “Terminais” no título aponta para ambos os locais de transição (“terminal de aeroporto”) ou simplesmente como limites: na era do Antropoceno, enfrentamos com toda a probabilidade um renascimento. Mas é um renascimento em que estamos sempre a enfrentar uma alteridade em nós próprios.

O que todos os objetos escultóricos desta exposição têm em comum é que são objetos parciais, tal como as próteses. Destacados do seu núcleo, decretam um estado ou potencialidade que sugere que ou têm alguma proximidade com um futuro desdobramento ou foram brutalmente destacados do seu núcleo.

Este é certamente o caso de L’Origine du Monde, um objeto feito de uma peça de carro queimada, derretida e contorcida, transformada numa forma inequivocamente vaginal, lembrando o banquete de Judy Chicago ou A Origem do Mundo de Gustave Courbet, esta última uma peça fetiche encomendada por um diplomata turco que até hoje continua a ser uma das obras mais solicitadas para empréstimo. Pela sua escala e crueza absoluta, a versão de Biscainho é despojada de qualquer erotismo e está prestes a tornar-se viva.

A peça central da exposição, é uma cópia de borracha branca, retirada do molde do polegar do artista à sua escala natural, assente sobre um fundo verde chroma no topo de um plinto. Outro fetiche despojado de qualquer energia libidinal, o verde refere-se às telas verdes utilizadas frequentemente em CGI, uma técnica inimiga do cinema purista, mas que tornou de forma indelével a longa-metragem mais característica do uso de efeitos visuais fantásticos e irrealistas do que da interação humana. O polegar atua aqui como uma cifra ou um avatar do objeto corporal, transportado para um contexto falso e manipulado. É o oposto polar do artefacto religioso ou da relíquia, em que toda uma história e fé estão concentradas, sendo simplesmente um substituto dispensável em nome de um contexto a chegar.

Este sentimento proléptico, de que algo está prestes a evoluir ou a acontecer, está por toda a parte na exposição de João Biscainho, que está muito integrada na ética futurista do século XXI. Mesmo quando existem resíduos do passado, eles existem em prol de uma maior transformação e remodelação. Por exemplo, em Glazing Gaze, uma bola de aço inoxidável polida, colocada na beira de uma prateleira, é acompanhada de um lodo branco deliquescente, derramado de algum lado para uma poça no chão. Com exceção da finalidade inescrutável da bola, sente-se a tentação de associar a substância branca ao sémen (de facto, é açúcar liquefeito e pegajoso). A bola é um símbolo dos tipos de sistemas e máquinas que simulam as funções corporais, mas cuja forma e substância é tudo menos humana. E o fim para que é feita esta máquina permanece obscuro, suspenso.

Os trabalhos sobre papel da série Collapsed Bubbles, consistem em configurações irregulares de círculos. Estas ecoam as grandes bolhas na medida em que as formas circulares se relacionam com sistemas e processos humanos que foram reduzidos a estruturas algorítmicas. Tratam da forma como os seres humanos foram reificados em dados que existem para vigilância e manipulação, unidades para um esquema de poder muito mais indefinível.

Corner Batch, uma pilha de lã de Alpaca crua amontoada num dos cantos da galeria, surge por contraste às narrativas fragmentadas da transubstanciação tecnológica de Biscainho. Como material não mediado, assenta como uma lembrança desconfortável da natureza e do natural. É um material que espera por transformação, de um tipo muito diferente das outras obras, na medida em que qualquer matéria-prima pode ser como tal, mas que rapidamente se transforma numa matéria insípida. A sua simplicidade é tal que nos lembra que a “natureza”, tal como é, é de facto uma criação humana, utilizada como contrapeso conceptual a tudo o que se nomeie ou intervenha. A natureza é um mito.

Body Terminals de João Biscainho, é essencialmente sobre a forma de como o mito tem sido reconfigurado na era hipertecnológica. Considerando que os mitos antigos eram corretivos das pequenas fraquezas humanas ou contos de virtude, rodeámo-nos de tantos aspetos de não-realidade, sujeitámo-nos a tantas alterações, e consolamo-nos de que outras modificações estão no horizonte, de que temos tudo menos a não-realidade internalizada. Encarnamos cada vez mais o mito, porque o novo real é o da ficção factualizada. João Biscainho soa a esta nota sem julgamento.

Como o alerta informático que nos dá apenas uma opção, a de premir o botão “OK”, Biscainho lembra-nos que somos arquitetos da nossa própria aquiescência.

Body Terminals está patente na Galeria Chauffeur até 5 de novembro.

O artigo foi escrito por Adam Geczy.

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