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all you can eat, Plataforma 285

A nova criação da Plataforma285 é um espetáculo transdisciplinar que cruza teatro, performance, instalação, dança e música vivo. Nas palavras do coletivo, este espetáculo reclama «o direito ao ócio» reivindicando o «direito ao descanso e ao aborrecimento». Contesta a ideia de que o tempo do ócio é tempo perdido. O ritmo desta peça vai de encontro à mercantilização das coisas e do tempo. Faz-nos refletir sobre os preconceitos que existem sobre as ideias de descanso e de tempo livre. all you can eat esteve em cena entre os dias 21-23 de outubro na Sala dos Geradores da Central Tejo do Maat.

O caráter industrial da Sala dos Geradores, as suas grandes dimensões e toda a maquinaria exposta dão um ambiente surrealista e de ficção científica ao espaço cénico, permitindo-nos questionar o tempo das coisas e da existência. Aquilo que damos como assegurado e definido, que nos coloca muitas vezes em ansiedade e stress social, tem como resultado a auto-crítica descontrolada: estou a desperdiçar tempo, não estou a fazer nada, não faço nada de produtivo. A obsessão pela produtividade que todes desconfio que sentimos é uma das grandes vitórias do capitalismo: toda e qualquer ação não pode ser vista ou pensada sem o fator da produtividade. O tempo de ação deste espetáculo oscila, umas vezes é muito lento, outras vezes é muito rápido, contudo, a performatividade em ambas as situações é muito tímida. O elemento performativo está diluído pelo cenário e pela música. A plasticidade de ambas é aquilo que atrai mais a nossa atenção. Falar de ausência de performatividade é porventura exagerado, mas não será exagerado dizer que a apatia é a qualidade que a reveste. Em momentos particulares da ação o ritmo acelera, abrindo espaço ao jogo entre som e movimento. Devido à acústica da sala, todos os pequenos barulhos que resultam da utilização de facas, recipientes e da água termal em spray são ampliados, povoando o espaço cénico de sons que invocam a textura desses mesmos materiais.

A música neste espetáculo assume um papel central. George Silver, artista convidado pela Plataforma para integrar all you can eat, compõe ao vivo a música deste espetáculo. Poucos ou nenhuns são os tempos de silêncio. Além de compor a música, George Silver manipula através de efeitos o som captado pelos microfones condensadores. Estes microfones captam todo o ambiente da sala, uma vez que são microfones de grande sensibilidade, mas concentram-se na ação central desta peça: a açorda que está sendo preparada sobre a pessoa deitada de barriga para cima numa mesa. O preparo desta receita dá aso a grande maluqueira, várias das ações e movimentos da preparação desta iguaria nada têm que ver com a maneira de fazer uma açorda. Em alguns momentos, estes mesmos movimentos dão-nos a sensação de que estão a manusear um alimento que não o em questão, por exemplo: por vezes a maneira de cortar as côdeas do pão parece a maneira de cortar carne. Diria que não há um fio condutor neste espetáculo, no entanto, esta ação dura praticamente todo o seu tempo e o efeito que tem no público é de desconforto. Um sentimento misto de nonsense e desconforto povoam o estado de espírito de quem assiste ao espetáculo. O clima frio é quebrado aqui e ali pelo sentido de humor e pelo bizarro.

Este espetáculo, no meu ponto de vista, vive de vários pequenos momentos. Se por um lado é difícil encontrar algum sentido ou significado na leitura clássica de princípio, meio e fim, por outro, sentimo-nos atraídos por pequenos conjuntos de ações que nos fazem ler este espetáculo como um conjunto de narrativas e ideias que comunicam ou não entre si. A título de exemplo, a dada altura Cecília coloca objetos de corda em forma de vagina com pequenas pernas em cima de uma placa de metal. Cecília mantém as pequenas vaginas em movimento dando-lhes cordas quando precisam. Simultaneamente, George Silver toca flauta através do ar que está a ser bombeado por Paula Sá Nogueira. É hilariante. Paula Sá Nogueira varia entre dar à bomba lentamente e freneticamente, tendo como resultando melodias por vezes calmas, outras vezes descontroladas. O momento em que George Silver, com o pescoço de uma galinha de borracha, toca a música Meet her at the Love Parade é magnífico. Um momento bem trash que foi entendido por quem habita a noite e o mundo da festa. Em suma, a leitura deste espetáculo não deve ser cronológica nem deve procurar grandes significados ou ilações. No meu ponto de vista, trata-se da materialização das ideias pela busca de outro tempo, do tempo do ócio e do nada fazer, tendo como resultado um conjunto de ações e uma performatividade que se colocam na ordem do sonho, do surreal, do nonsense.

Rodrigo Fonseca (1995, Sintra). Estudou na António Arroio, é licenciado em História da Arte e mestre em Artes Cénicas pela FCSH/UNL. Foi cofundador da editora CusCus Discus e do festival Dia Aberto às Artes. Além da Revista Umbigo, faz crítica musical na plataforma Rimas e Batidas. É técnico de som especializado em concertos e espectáculos e artista residente da associação cultural DARC.

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