O que podem as palavras nos 20 anos do DocLisboa
Este ano foi a 20ª edição do DocLisboa que marcou também os 20 anos do Festival. Como é já seu apanágio, de 6 a 16 de Outubro fomos convidados a viajar pelo passado sempre com os olhos no futuro. É em ciclos como Da Terra à Lua, Heart Beat, Riscos, Verdes Anos, Doc Alliance, Cinema de Urgência, nas Retrospectivas de Carlos Reichenbach e da Questão Colonial e ainda, nas competições internacional e nacional, que somos convidados a questionar o presente olhando para a manta de retalhos que é o nosso passado.
Escreveu Miguel Ribeiro, diretor do DocLisboa, na mensagem inicial do catálogo desta edição, “Este conjunto de filmes que são actos iniciáticos de pegar numa câmara e, com o cinema, contar a própria história e dos seus, dos que formam alianças. Um cinema que é arma de luta e está carregado de solidariedades. (…) Ao longo destes 20 anos, o mundo mudou muitas vezes. Houve poucas ocasiões em que foi simples compreender se melhorava. Mas alegra-nos saber que o DocLisboa juntou sempre os curiosos e inquietos. É essa curiosidade e inquietação que queremos sempre honrar. É esse espírito de luta e de paixão que queremos sempre continuar. (…) Juntos construímos o futuro.”. É neste tom de curiosidade e inquietação, neste cinema que é arma de luta e está carregado de solidariedade, neste caso, poderei dizer, sororidade, que nos deparamos com o filme O que podem as palavras.
“Em 1972, as escritoras Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno publicaram o livro Novas Cartas Portuguesas.” Assim nos é dado o mote do filme de Luísa Sequeira e Luísa Marinho. Numa viagem pelos arquivos nacionais e pelas entrevistas feitas por Ana Luísa Amaral às três autoras e ainda, testemunhos de Gilda Grillo e Adelino Gomes, que somos levados a conhecer a dimensão que esta obra teve a nível nacional e internacional. E, através de tudo isso, a vislumbrar o papel da Mulher na sociedade portuguesa e mundial na década de 70 do século XX.
A pouca visibilidade e conhecimento da importância que esta obra teve no movimento feminista mundial, tendo sido o apoio às Três Marias, como ficaram conhecidas na época, a primeira ação feminista internacional, demonstra bem o quanto ainda não sabemos sobre a nossa História e sobretudo o quanto não sabemos sobre narrativas silenciadas que teimam em permanecer esquecidas ou pouco relembradas.
Já a dificuldade que as realizadoras tiveram em aceder aos arquivos nacionais, quer por motivos logísticos ou financeiros, relembra-nos o quanto está por fazer na democratização dos arquivos e na facilitação do trabalho de investigação em Portugal. Quanto da nossa História e de tantas Estórias que são também coletivas nos estão a escapar por entre as brechas dos arquivos nacionais por estudar, catalogar e disponibilizar? Quanto da nossa História está por redescobrir em arquivos que tantas vezes perpetuam métodos de catalogação arcaicos que cristalizam uma História hegemónica contada a uma só voz?
O que podem as palavras surge assim como uma revisitação de um dos momentos mais marcantes da história do feminismo em Portugal. Após o lançamento do livro Novas Cartas Portuguesas, que sobreviveu apenas dois dias nas livrarias antes de ser confiscado pela polícia, as escritoras foram perseguidas e intimidadas pelo Estado Novo. De forma a humilhá-las, a questão foi colocada sob a jurisdição da polícia de costumes em detrimento da DGS (antiga PIDE), dessa forma o livro seria considerado apenas um conteúdo pornográfico e despido do seu teor e propósito político.
O que o Regime não esperava é que o Movimento Feminista Internacional fosse mobilizar-se a nível mundial em apoio às Três Marias. Foi no arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros que durante a pesquisa realizada encontraram correspondência dos embaixadores portugueses pelo mundo a darem conta que era notícia a perseguição do Estado Novo às Novas Cartas Portuguesas. Falamos de notícias vindas de todos os cantos do mundo, desde o Japão aos Estados Unidos, Nova Zelândia, África do Sul, Europa ou América Latina. O mundo todo virou os olhos para Portugal condenando o regime português pela repressão e os valores patriarcais de uma sociedade cristalizada no tempo na década de 70 do século XX.
Procurando saber um pouco mais sobre o projeto contactei a Luísa Sequeira e a Luísa Marinho para uma pequena entrevista.
Margarida Botelho – Neste momento quais as perspetivas de circulação do filme nacional e internacionalmente?
Luísa Marinho e Luísa Sequeira – Queremos que tenha estreia comercial. E em princípio será em abril, maio. Entretanto enviámos o filme para alguns festivais internacionais. Estamos a aguardar respostas.
MB – Como foi o processo inicial de criação do filme e como começaram a trabalhar em conjunto?
LM – Já há muito tempo que a história das Três Marias me interessava. Já tinha pensado mesmo que gostaria de fazer um documentário sobre o assunto. Mas foi só quando a Ana Luísa Amaral me convidou – a mim e à Luísa Sequeira – que a ideia se tornou mais realista. Eu fui aluna da Ana Luísa Amaral na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Acabamos por ficar amigas. Nessa altura eu já era jornalista e já tinha realizado um documentário (Poeticamente Exausto, Verticalmente Só – A história de José Bação Leal, 2007), que cruza também literatura e resistência contra a ditadura. Talvez por isso ela me tenha convidado. A Ana Luísa Amaral estava na época a desenvolver o projeto de investigação sobre o impacto internacional das Novas Cartas e foi nesse âmbito que quis avançar com o documentário.
LS – Eu conheci a Ana Luísa Amaral durante entrevista, na altura coordenava e apresentava o Fotograma, um programa autoral de cinema em língua portuguesa. Lembro-me que foi um encontro incrível, falamos sobre cinema, poesia e maternidade numa sociedade capitalista. Criamos de imediato uma ligação especial. Na altura tinha realizado um documentário para a RTP sobre a encenação da peça de teatro A mais velha profissão, da Paula Vogel, encenada pela Fernanda Lapa. Uma peça que questiona a situação económica da mulher numa sociedade machista. Foi nesse contexto que fui convidada pela Ana Luísa Amaral para fazer parte deste bonito processo para realizar o documentário.
MB – O primeiro contacto com as Três Marias foi simples ou houve alguma resistência? Como surgiu a ideia de ser a Ana Luísa Amaral a dirigir as entrevistas?
LM e LS – Foi um processo muito natural e ficou decidido logo no início, foi a Ana Luísa Amaral que combinou as entrevistas com elas. Era amiga das três. Havia uma relação de proximidade e grande confiança. Penso que não terá havido nenhuma resistência. Bem pelo contrário.
MB – No Q&A falaram das dificuldades que tiveram na produção do filme, um trabalho que estão a desenvolver há 10 anos. Podem falar-me um pouco deste processo? Não só das dificuldades que sentiram e que vos foram atrasando, mas também da forma como foram construindo o filme e trabalhando nele ao longo deste tempo, as etapas, os avanços e recuos, as vitórias e os obstáculos?
LM e LS – Houve alturas de muito ânimo, principalmente quando as entrevistámos e estávamos sempre a descobrir coisas novas. Com o passar do tempo e a falta de apoios, pois concorremos a inúmeros concursos, ICA, RTP, GULBENKIAN, e nada… Começámos a dedicar-nos a outros projetos e este ficou um pouco “a marinar”. Mas nunca foi esquecido, tanto que foram realizadas várias entrevistas durante o decorrer do processo. Entrevistamos os investigadores do projeto de internacionalização das Novas Cartas Portuguesas. A Luísa Sequeira foi até ao Brasil entrevistar a Gilda Grillo, a Luísa Marinho a convite da Ana Margarida que fazia parte do grupo de investigação das Novas Cartas foi até Inglaterra à Universidade de Exeter. Falávamos muitas vezes que tínhamos de avançar, nem que fizéssemos por nós algo mais pequeno. Por outro lado, achávamos que o material que tínhamos merecia um tratamento digno. Conseguimos produzir e finalizar o filme com a produtora Anexo82, a Ana Almeida foi incansável neste processo, pois sempre acreditou no projeto, também foi muito importante na montagem pois trouxe um olhar fresco para as imagens, foi um processo muito colaborativo. Aliás, esse processo foi muito intenso, as três na sala de montagem, fazendo referência às Novas Cartas Portuguesas “Em salas nos queriam às três, atentas a bordarmos os dias com muitos silêncios”, nós estivemos juntas a “bordar” o filme, três mulheres e o Sama (risos). Por isso, quando recebemos o apoio necessário, quisemos terminá-lo com qualidade e rapidamente.
MB – As ilustrações do Sama são uma parte estrutural da estética do filme. Porque é que decidiram que iriam querer trazer essa dimensão para o filme e porque o escolheram para o fazer?
LM e LS – Decidimos logo no início, pois o Sama sempre acompanhou o projeto, produzindo ilustrações e propondo soluções visuais para o filme desde quando este era apenas um dossiê que apresentávamos para concursos de cinema. Daí, para as ilustrações se transformarem em animações e manipulações, foi uma evolução natural. Sama é um artista conhecedor da História e exímio contador de estórias! O seu método de animação, uma mise-en-scène toda própria que usa recortes, colagens e objetos além dos seus desenhos originais, que chamamos de “samanimation”, já tinha sido provado eficiente na série MOTEL SAMA, exibida alguns anos antes no Canal Brasil, e que também existe numa versão curta-metragem que teve estreia no Festival Luso Brasileiro em Santa Maria da Feira. O timing de Sama somado ao seu senso estético apurado e original, agrega organicidade em doses de suspense e humor ao nosso filme.
MB – Precisamente porque a investigação feita reúne informação e documentação com enorme valor histórico, está previsto ser feita outra publicação em qualquer suporte que reúna parte dessa informação que não pode ser fixada no filme?
LM e LS – Existe o livro As Novas Cartas Portuguesas entre Portugal e o Mundo, organizado pela Ana Luísa Amaral e a Marinela Freitas, resultado da investigação sobre o impacto internacional das Novas Cartas. Uma vez que temos muito material que não foi usado para o filme, além de desenhos e outro material artístico essa possibilidade está em cima da mesa. É uma obra muito rica e um dos desdobramentos é a peça de teatro que a Luísa Sequeira escreveu e está a encenar, Rosas de Maio, nasce desse processo artístico e de investigação, é uma coprodução do TEP – Teatro experimental do Porto e do TMP – Teatro Municipal do Porto, e vai estar em cena dia 11, 12 e 13 de novembro no Rivoli na cidade do Porto.
MB – O que significa para vós dar novamente visibilidade às Novas Cartas Portuguesas mais de meio século depois do seu lançamento? Como acham que estas dialogam com a contemporaneidade, com as Mulheres do século XXI e com a desconstrução da binariedade de género?
LM – Pôr em causa os papéis de género já é um passo para a desconstrução da binariedade de género. No livro, elas às vezes “brincam” com isso, como é o caso do texto O Corpo. A crítica que já faziam da masculinidade é perfeitamente atual e pertinente. Além disso, abordam outros temas, como os problemas ambientais, a guerra, o colonialismo, a violência de género, a opressão da mulher e também do homem em sociedades repressivas e autoritárias. Estes temas continuam atuais.
LS – Novas Cartas Portuguesas é um livro que carrega uma enorme potência e continua a abordar questões contemporâneas. A história não está cristalizada e é cada vez mais urgente questionar e refletir o nosso percurso ao longo da história, pois as mulheres foram esvaziadas de todas as suas liberdades, económicas, sociais. De certa forma as mulheres foram e continuam a ser a base da sociedade capitalista, pois ainda somos a força de produção, ainda temos um longo caminho pela frente. As desigualdades são brutais, a feminização da pobreza é uma constante. Acho que é importante ter consciência que ainda vivemos num mundo assente numa estrutura patriarcal e capitalista com várias formas de opressão.
O que podem as palavras, venceu o Prémio do Jornal Público para melhor filme português e marcou a 20ª edição do DocLisboa, numa viagem ao passado relembrou-nos do que está por fazer no futuro. Disse-nos Mia Tomé, que emprestou voz ao filme – Minhas irmãs, mas o que pode a literatura? Ou antes, o que podem as palavras?. Relembraram-nos os 20 anos de DocLisboa que a literatura, as palavras, as imagens e o cinema podem levantar perguntas, consubstanciar questões, trazer dúvidas, relembrar o que aconteceu e, com isso, relembrar o que ainda acontece, o que não queremos que aconteça ou que não volte a acontecer, o que esquecemos, o que não esquecemos, o que relembramos ou o que queremos relembrar.
A arte em geral, neste caso o cinema em particular, permite-nos muitas vezes encontrar um refúgio por um lado, uma esfera pública de debate por outro. O DocLisboa tem procurado ser um espaço de debate e pensamento crítico profícuo, são 20 anos de luta pela recuperação de narrativas que ficam tantas vezes por contar.
O que podem as palavras, relembra-nos a importância da luta pela recuperação das estórias coletivas que nunca chegaram a História e a urgência de contar a História a várias vozes.