Entrevista com Ana Catarina Teixeira, autora da capa do mês
Mafalda Ruão entrevista Ana Catarina Teixeira, autora da capa do mês de outubro da Umbigo, percorrendo um trabalho que irrompe de múltiplos encontros com o exterior. De fora ficam intenções narrativas ou impulsos emocionais, pois o que a artista visa materializar desenvolve-se mais facilmente sem um título, ou sem apego, como um jogo entre limites de estados, consequência do deslumbramento pelo dia a dia, matéria e suas propriedades, e pelos medium que as comunicam.
Mafalda Ruão – Com um currículo que envolve uma licenciatura e agora um mestrado em Pintura, como é que se desenvolveu um percurso artístico que envolve maioritariamente a escultura e o vídeo?
Ana Catarina Teixeira – A licenciatura e o mestrado em Pintura possibilitam aos alunos a exploração das mais diversas formas de expressão artística, e no meu caso, rapidamente fui cativada pela escultura. Deste modo, até ao final do 2.º ano, realizei trabalhos que podem ser considerados trabalhos escultóricos, e a partir do 3.º ano transitei para a utilização do vídeo. Este caminho compreende uma envolvência muito direta e sensorial com a matéria, que, posteriormente, deu lugar a uma abordagem mais distante e ascética.
No fundo, penso que a escultura desencadeou ou foi o veículo para a minha aproximação ao exercício de pensar um objeto no espaço e, consequentemente, à exploração da relação física entre objeto e espetador, o que reflete claramente a componente instalatória transversal às minhas obras. Neste seguimento, investigo, desde o final da licenciatura, a materialidade do dispositivo/meio do vídeo, maioritariamente através da superfície de projeção − as duas disciplinas, escultura e vídeo, acabaram por convergir no meu percurso artístico.
MR – A tua produção artística emana um minimalismo sublimar, falo em cor, forma, disposição no espaço. O que pode invocar o silêncio que escasseia no ruído? Que emoções te movem a criar?
ACT – Não sei se diria emoções, mas guio-me pelo meu encontro (enquanto autora) com o exterior; o meu discurso tem origem no exterior, no sentido de que é pautado por fascínios diversos, desde momentos ou acontecimentos específicos do quotidiano, até ao confronto com as qualidades de cada matéria e a especificidade ou natureza de cada medium. As soluções plásticas que desenvolvo acabam por resultar de uma lógica de rutura, desconstrução e reconfiguração, um jogo entre limites de estados.
Também me apercebi da ambiguidade presente nas minhas criações: se por um lado há esta situação de fratura, fragmentação e desconstrução e até inquietação (ver, em especial, as obras Batalha Naval e Barragem #1-#3), por outro, há uma certa simplicidade e quase austeridade, uma ordem, no fundo, o que sugeres como “minimalismo sublimar”.
MR – Ainda sobre o ato contemplativo do minimal, reparei que muitas das tuas peças não possuem título. É isto uma forma ténue de colocar o espectador mais focado na matéria e na forma, do que numa sugerida interpretação?
ACT – Talvez não tenha sido algo consciente, mas ao confrontar-me agora com a tua questão, penso que essa é uma explicação possível. De facto, a escolha de não atribuir título pode refletir o meu interesse na resposta sensível por parte do espetador, particular a cada momento e circunstância (consoante o ponto de vista, por exemplo) e pode refletir, também, o meu processo de trabalho, que, muitas vezes, tem como ponto de partida as propriedades dos materiais (como se observa nas peças de vidro).
No caso da obra Batalha Naval, senti a necessidade de atribuir o título em questão para descodificar uma componente do trabalho que diz respeito à questão do lúdico e, consequentemente, à ideia de acaso e imponderabilidade dos resultados. Os navios passam, há a sensação ou sugestão de um risco iminente, mas, na realidade, não acontece nada, sendo o título uma contradição.
MR – A propósito de Batalha Naval, 2019 e também Barragem #1-#3, ambas as narrativas compreendem um movimento subtil, diria até silencioso, mas tornado óbvio pelo ato de navegar em si e pela sua instalação, a qual suscita o confronto desses sucessivos deslocamentos através de projeções entrecruzadas. Quais foram as tuas inspirações para estes trabalhos? O que os une e distingue?
ACT – Batalha Naval surgiu da atração pela condição de limite enquanto momento que corresponde ao fim ou começo de algo; neste sentido, aborda a aproximação a um momento limite, através da ficção de um jogo de guerra, em que os vídeos terminam justamente uns segundos antes do possível choque entre os navios acontecer. Gera-se, portanto, uma situação de tensão crescente e de iminência do conflito, daí o recurso ao vídeo, uma vez que este meio implica necessariamente uma determinada duração, que permite, por sua vez, a criação do efeito de incompletude e suspensão.
As três obras têm em comum a apresentação de um movimento demorado, lento, que se relaciona com a duração necessária ao tal efeito pretendido. Partilham, também, da mesma lógica de trabalhar com o próprio mecanismo do medium (duração, movimento em loop, por exemplo) para a criação de uma imagem que se reforça em si mesma. Contudo, há uma leve diferença: enquanto na Batalha Naval há a acentuação de um ponto conclusivo que nunca chega (uma certa descontinuidade, fratura), as obras Barragem #1- #3 sublinham o durante, sem nunca darem conta de um ponto de partida ou de chegada.
As peças Barragem #1-#3 refletem uma abordagem à materialidade do meio do vídeo (que mencionei anteriormente), de maneira que a relação entre a imagem em movimento e a superfície de projeção acentua a construção humana do vídeo − a barragem −, através da ideia de retenção e de movimento latente ou em potência da água.
MR – As mesmas peças de vidro que fizeram parte da exposição Tracing the Infrathin, onde se apresentaram num plinto, invocáveis e sacralizadas, podem ser vistas em simbiose com o espaço envolvente (natureza) na forma de fotografia digital. Através deste cambio no formato expositivo (e expressivo), é possível aduzir diversos referentes da peça – a lápide, o menir, a rocha, o corpo. O que têm em comum todas eles nos diferentes contextos? Podes explorar as tuas intenções?
ACT – As fotografias em questão são um segundo momento no contexto dessas peças de vidro. Inicialmente, as peças de vidro surgiram do confronto com a técnica de casting; através dessa técnica, procurei a qualidade de robustez, em subversão da aparente fragilidade que o vidro manifesta. O conteúdo destas peças encontra-se na forma, na construção da forma e, consequentemente, na relação com os materiais. Assim, nesta “fase” inicial, as formas remetem a referentes relacionados com menires e rochas, por associação ao seu caráter estrutural e robusto e também pela ideia de camadas que se sucedem (estratos geológicos).
Num segundo momento, tornou-se evidente a necessidade das próprias peças de vidro regressarem ao seu estado primário, a saber, a esta ligação e envolvência com a natureza, com a terra. Constituem, portanto, uma obra permeável às influências do espaço envolvente.
Neste sentido, já não se trata apenas dos diferentes contextos de referentes da forma, mas, sim, das peças incorporarem esse dinamismo da crosta terrestre, das camadas geológicas que se adaptam, ao adaptarem-se elas mesmas a diferentes locais. Em suma, há a construção e desconstrução de uma ideia que é o corpo das peças.
MR – Dirias que existe um elo de ligação, isto é, uma narrativa que perpassa as tuas criações?
ACT – Não diria propriamente uma narrativa, mas reconheço que aquilo que quero transmitir acaba por ser transversal a todos os meus trabalhos, ou seja, o conteúdo ou os interesses são comuns, o que se altera é a forma de abordar essas questões. Portanto, acabo por recorrer a diferentes linguagens (de maneira orgânica, não é uma “imposição” que coloco em mim), como se comprova pela passagem pela escultura, som, vídeo e projeção, originando-se “diferentes” projetos/obras. As problemáticas que me interessam incidem no espaço, no movimento, na imagem, na condição de limite, na inquietação, no quotidiano, no percurso/viagem, etc.
De modo geral, afasto-me da palavra narrativa, pois não procuro um propósito narrativo, ou pelo menos não procuro contar histórias com princípio, meio e fim, mas, no contexto dos trabalhos com vídeo por exemplo, pretendo transmitir a duração de uma determinada imagem e, necessariamente, a experiência do tempo (e também do espaço) em que os vídeos decorrem.
Em suma, posso afirmar que um dos elos que perpassa as minhas criações reside na exploração da perceção do espetador, quer através das superfícies de projeção em Batalha Naval e Barragem #1-#3, quer através da materialidade do vidro.
MR – 2022 é um ano que já conta com duas exposições coletivas: Depois do Banquete (Lisboa, Pt) e Tracing the Infrathin (Lisboa, Pt). O que se segue e quais os planos agendados para o futuro?
ACT – Os planos para o futuro compreendem a conclusão da minha dissertação no âmbito do mestrado em Pintura. Dado que se trata de um projeto teórico-prático, o resultado será não só um enriquecimento da minha prática artística no domínio teórico, mas um corpo de trabalho novo. Este é o objetivo mais imediato e, seguidamente, gostaria de explorar oportunidades para expor essas novas obras.