Festival Avesso
O festival Avesso foi criado pela Associação Avesso, em 2014, por um grupo de pessoas ligadas às artes, oriundas da Ponta do Sol, quando a Madeira ainda tinha pouca oferta cultural. Com os apoios da Direcção Regional da Cultura, da autarquia local e de várias instituições públicas e privadas, esta estrutura desenvolve um vasto programa cultural, que muito contribui para a captação de públicos dos outros concelhos desta Região Autónoma e cujo objectivo é promover a circulação nacional e internacional de projectos artísticos.
Assim foi criado o Teatro do Avesso, tal como um projecto de revista à portuguesa o Avesso Convida. A associação promove ainda outras iniciativas de formação em canto e teatro com crianças e jovens, que visam a sensibilização e o desenvolvimento do público através de criações com envolvimento das comunidades (das escolas e das famílias) todos os fins-de-semana. E foi neste contexto de grande produtividade artística que pudemos assistir a dois espectáculos de teatro, entre os vários eventos que fizeram parte do programa deste festival http://festival.avesso.pt .
Nos Tempos de Gungunhana foi um deles. Trata-se de um espectáculo baseado no teatro comunitário africano. O texto surge a partir do livro Ualalapi, do escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, e relata uma sequência de episódios paralelos à vida do rei moçambicano Gungunhana. Uma performance de um só actor (e autor) Klemente Tsamba, que cruza o teatro físico e a oralidade numa interpretação fluida e de uma autenticidade notável enquanto narrador, ao justo modo da tradição oral dos contadores de histórias. O tempo linear de uma época é envolvido no tempo fantástico da fábula e do misticismo, a ponto de assistirmos a uma pequena cerimónia de magia, que evoca a cultura ancestral. A dinâmica de constante transformação deste actor, que se duplica numa das esposas de Gungunhana, é de uma expressividade muito envolvente e a contínua requisição do público para participar nas histórias, sempre em tom de provocação, dá a esta narrativa e à interpretação uma vertente vivida e integrada do tempo histórico e da tradição, com a participação desta comunidade que é o público. O protagonista sussurra, modela a sua voz, toca um instrumento, passando também nós a pertencer ao mundo deste karingana (conto tradicional moçambicano).
Outro espectáculo a que pudemos assistir foi o Má Sorte, a adaptação/versão cénica de Sofia Berberan e Cátia Terrinca do texto Má Sorte Ter Sido Puta, de John Ford (a partir da tradução de Cucha Carvalheiro) e com encenação de Paulo Lage. Assistimos a uma tragédia contemporânea, em moldes clássicos, cujo diálogo entre os dois protagonistas (nas boas interpretações de Cátia Terrinca no papel de Anabela e Pedro Manana no papel de Giovanni) é articulado em tom medieval, mas em que a fisicalidade da interpretação, contrastando, se mostra despojada e sem grandes artifícios. A entrada e a saída dos actores do epicentro da acção, faz-se pela transposição de um painel acrílico que ocupa o fundo do palco, numa estratégia brilhante de encenação, e que é dos momentos mais fortes a que assistimos. Nessa divisão cénica do espaço propõe-se uma outra dimensão da existência, a onírica, que, ao ser atravessada, nos leva a testemunhar esse acto trágico cometido à boca de cena para que, uma vez finalizado, se volte de novo a acolher os protagonistas atrás desse painel transparente, onde já não há lugar para o juízo final. Aí, Anabela e Giovanni, os irmãos-amantes, dançam de forma desenfreada a liberdade das suas crenças e desejos, no lugar onde só as almas têm permissão para dançar. Mais perto, junto a nós mortais, os actores encontram-se frente a frente, equilibrados em cima de umas finas estruturas de madeira, assentes no chão, como uma subtil marcação de limites entre dois amantes cujo amor é interdito. À frente deles, vemos facas penduradas por elásticos em constante tensão, que as suas personagens agarram à vez…até que o punhal lançado de um amante ao outro vai aumentando a tensão na sala. O texto falado faz uso da repetição, como se fosse necessária a confirmação de cada movimento e assim vincar a gravidade desse tema clássico e labiríntico que é o incesto. Parte-se da sua justificação, dizendo Giovanni: “(…) Devem convenções, palavras fúteis como irmão e irmã erguer barreiras entre mim e a minha felicidade? (…) Não estamos pela própria natureza mais unidos? Não deveria a religião ligar-nos numa só alma? Numa só carne? Num só amor? Num só coração?” para a culpa dos amantes, para a sua penalização e para o único desfecho que se afigurou possível, a morte.
Neste espectáculo, o contraste entre o cenário minimalista de Bruno Caracol, a encenação crua e directa de Paulo Lage e a linguagem à época de John Ford, serve de gatilho e provocação para examinarmos, e também nós julgarmos, o que está em causa no enredo. De uma forma intemporal, somos interpelados a acordar temas dormentes da antiguidade e da mitologia, como o incesto e a interdição, e a levantar novas interrogações sobre o amor, as convenções e a pressão social, numa indagação que vem questionar os fundamentos e os limites da nossa moral. Num festival como o Avesso há ainda lugar para o humor ao estilo Stand-up Comedy. Pedro Tochas, com o espectáculo Descobrimentos, partilha as descobertas quotidianas de um homem de 50 anos, os seus próprios “descobrimentos”, agarrando a audiência no primeiro punhado de piadas, já que a identificação do público com o artista foi praticamente imediata. Tal como o universo infantil não ficou de fora, com o espectáculo Piquenique de Histórias, que Natália Bonito e Vítor Oliveira fizeram a partir da leitura de livros do autor Eric Carle.
O que é de louvar acerca deste festival é a diversidade da sua oferta cultural que se traduz, no que concerne às artes performativas, na diversidade do estilo dos espectáculos apresentados, como pudemos constatar, o que é fundamental para a formação de públicos e de massa crítica. O Avesso tem o apoio da DGArtes, Ministério da cultura Portugal.
Nota: Jini Afonso não escreve ao abrigo do AO90.
No Tempo de Gungunhana – Ficha Técnica:
Criação/Interpretação: Klemente Tsamba; Textos originais: Ungulani Ba Ka Khosa; Apoio/assistência criativa: Filipa Figueiredo, Paulo Cintrão e Ricardo Karitsis; Adereços e Figurinos: Klemente Tsamba; Fotografia: Margareth Leite e Danilo Ferarra; Operação de Luz e Som – Rita Heleno Duração: 60 min; Maiores de 16 anos.
Ficha Técnica de Má Sorte:
Má Sorte“, a partir de “Má Sorte Ter Sido Puta“, John Ford.
Co-produção entre: Buzico!Produções, UmColetivo e CAE Portalegre.
Equipa Técnica e Artística:
Encenação- Paulo Lage.
Assistência de Encenação- Haroldo Ferrari
Produção- Duarte Nuno Vasconcellos.
Assistência Produção- Raquel Pedro
Versão Cénica- Cátia Terrinca e Sofia Berberan. A partir da tradução de Cucha Carvalheiro.
Interpretação- Cátia Terrinca e Pedro Manana.
Cenografia- Bruno Caracol.
Figurinos- Mónica Cunha e Olga Amorim.
Desenho Luz- João P Nunes.
Desenho de Som- Frederico Pereira.
Design- David Costa.
Fotografia de divulgação – Leandro Fernandes.
Este espectáculo tem apoio à criação da DGArtes.
Espectáculo tem 1 hora de duração e está classificado para M/16.