A Noite alegórica de André Romão
Em 1919, Sigmund Freud publica um artigo intitulado «Uncanny».
O cerne desta noção [estranhamento], é a sua paradoxal natureza, uma vez que este estranho, é, no entanto, uma estranheza familiar.
Existem vários focos na Noite que André Romão apresenta na Galeria Vera Cortês. No espaço da galeria, André Romão apresenta-nos fragmentos de corpos humanos, ora fundidos com a luz, ora com objetos; por vezes a madeira enquanto prolongamento da carne; ramos como prolongamento do tempo.
Diria que existe no trabalho do artista a confluência da atitude do arqueólogo, com a do colecionador e do alegorista – talvez este último seja aquele no qual os anteriores convergem.
Muitas das peças que encontramos na exposição são retiradas do seu tempo e contexto de origem, apresentando, à fraca luz da noite, e do agora, essa convivência de tempos distantes colocados em diálogo com elementos contemporâneos, tanto executados pelo artista, como achados.
“O alegorista lança mão disto e daquilo no confuso repositório do saber que tem à sua disposição, pega numa peça, junta-a a outra e tenta ver se se ajustam uma à outra: um sentido para uma imagem, uma imagem para um sentido. O resultado é imprevisível, porque não existe uma ligação natural entre ambos.”[1]. Isto diz-nos Walter Benjamin, para quem o trabalho em torno da alegoria foi uma peça vital do seu trabalho e pensamento, iniciado em A Origem do Drama Trágico Alemão (Berlim, 1928).
A densidade do tempo equipara-se à da noite. Falamos de objetos que encontram quem lhes devolva o olhar. Um olhar que se cruza com o estranho, regressando a Freud e ao sem-corpo, como na peça Ancient Woods (2022), na qual uma cabeça de olhar vidrado parece viver. No entanto, o seu corpo é o do fantasma. Um vazio por debaixo de uma tapeçaria do século XVII confirma não apenas o ímpeto do estranho, mas também o do alegórico.
Uma grande parte das obras apresentadas na exposição resultam de um diálogo que sublinha a noção de fragmento. Grafting (dead wood) (2021), por exemplo, apresenta o fragmento de uma escultura de madeira – que se pode ler na ficha técnica “provavelmente de Flandres cerca 1600” -, alvo de uma intervenção por parte do artista. A escultura datada do século XVII é atualizada. Com ela, poderiam conviver os fantasmas ou as criaturas das florestas noturnas de André Romão, uma vez que o gesto do alegorista, afinal, é esse – dar uma sobrevida às coisas. A seiva dos ramos vivos da noite de hoje a fazer o sopro que desperta o antigo.
A ideia de fragmento surge igualmente aliada à própria dispersão do corpo pela exposição. Restos ou parte do corpo humano encontram-se pelo espaço Foot (2022), um pé; A touch of the fox / Sunambulo (2022), uma cabeça; alguns deles iluminados à luz fraca, porque afinal, ainda é de noite.
Não deixa de existir uma espécie de narrativa a unir (secretamente) os espíritos destas criaturas. Talvez a fusão entre o artista e o arqueólogo. Esta é, por isso, uma história deixada em aberto para que o espectador se entregue à coabitação com o estranho – supor-se raposa por baixo da tapeçaria de árvores e vegetação – possuir um corpo-árvore, como em Dedo (2022) – e palavras que se confundem com os focos de luz. Ou as estrelas.
No texto que acompanha a exposição, o artista sonâmbulo escreve sobre os poemas que estão na exposição (Stockwell poems, 2020- 2022). Romão escreve sobre essa ligação entre os poemas e as peças, dizendo que são uma só coisa.
Afinal, os ramos que se fundem com o tempo, tal como o olhar que procura perfurar a noite, não são assim tão estranhos um ao outro. A seiva que sopra, também pode ser a mão que escreve.
Noite, está patente na Galeria Vera Cortês até 29 de outubro.
[1] Fragmento [J80, 2 / J80a1], Walter Benjamin, As Passagens de Paris, Trad., João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2019