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OH MY DOG!: João Marçal na Galeria Minuta

Um conjunto de pinturas díspares – com registos, dimensões e formatos distintos – habitam um espaço único, num exercício exploratório que leva o visitante a uma cuidada reflexão acerca do que une todas as obras presentes. Poderia supor-se que um intervalo de tempo pudesse consagrar a união, mas algumas obras foram produzidas com quase vinte anos de diferença e em nada se assemelham no domínio da aparência. Essa distância temporal torna-se física dentro do espaço expositivo, reforçando a divisão do mesmo em dois momentos. Mas partamos do princípio.

Estamos no elevador; aguardamos que este nos transporte até ao quarto andar do edifício da CMS – onde se localiza a Galeria Minuta. As portas abrem-se, damos um passo em frente e estamos no centro da exposição. Uma pintura vertical de grandes dimensões ergue-se de imediato à nossa direita; é um quase monocromo azul – com um belíssimo escorrido na lateral – interrompido por um círculo amarelo que sugere tridimensionalidade. Será uma gema? Consultamos a folha de sala e verificamos que esta se intitula Porta. Com este dado em mente seguimos na direção oposta, intimidados.

Esta situação ilustra uma característica comum na pintura de João Marçal. A superfície pictórica entra em diálogo com elementos paragráficos, conduzindo o espectador a uma experiência mista entre estas duas dimensões. Neste caso, ao ler o título, Porta, a experiência, que antes incidia sobre o domínio do visível – evocando no espectador um certo imaginário pictórico, até reforçado pelo escorrido – transfigura-se para um plano diferente, deixando quase vencer a literalidade sobre a ilusão; a derrota do abstrato por parte do concreto. O constante choque de ambas as dimensões – sendo a interior o que é específico ao suporte e a exterior o que transcende a sua fisicalidade – é duplo e paradoxal.

Atente-se ao primeiro momento desta exposição – no sentido contrário à Porta referida anteriormente. Temos o privilégio de observar algumas pinturas mais recentes e até mesmo inéditas de João Marçal, das quais destaco uma série devidamente numerada que se intitula Jouhatsu. Nesta série são evocados padrões de aparência industrial, passando por vezes perto de um total apagamento da marca manual. O título não nos é muito familiar; uma breve pesquisa deixa apenas a sugestão. No entanto, uma das pinturas contém no seu enquadramento uma característica diferenciadora. Essa característica é a falsa sensação de que está incompleta. O seu aspeto inacabado – que só se manifesta plasticamente – renúncia ao medo modernista da manufatura e permite ao espectador a reconstrução do processo manual. A partir daqui, mesmo que as restantes pinturas da série não beneficiem dessa “ausência”, tem a sua apreensão contaminada pela mesma.

Seguimos guiados por quatro pinturas que representam portas de autocarro ao longo das janelas da galeria. A sua perpendicularidade em relação às mesmas, juntamente com a forma menos convencional com que são expostas (pousadas no chão), ampliam a sua possibilidade de expansão no espaço, transfigurando uma experiência do quotidiano para o campo artístico, sem se substituir a esta; num jogo de possibilidades e impossibilidades da pintura, que se simplifica e complexifica a cada nova informação adquirida.

A própria expressão que dá título à exposição resulta da subversão de uma frase feita, que segue um processo semelhante ao utilizado pelo pintor, no sentido em que – e como refere a folha de sala da exposição – as pinturas de Marçal já existem algures antes de serem encontradas e, por fim, pintadas.

Vamos de viagem – não de autocarro, mas numa máquina do tempo – a outros tempos e vivências; algumas de memória comum, reconhecíveis a várias pessoas; outras de cariz pessoal, mas por vezes desvendadas – caso da pintura Quarto n. º15, entregue pela folha de sala, tratando-se de uma reprodução do padrão dos têxteis do quarto de infância do pintor.

Este não é um exercício de sugestão de formas reais através da pintura, mas sim uma complexa transposição de formas, memórias, imagens maturadas, narrativas e histórias pessoais; em direção ao território autónomo da pintura enquanto objeto – no que diz respeito às suas propriedades materiais e físicas – e, paradoxalmente no sentido oposto. Provocando uma tensão entre a literalidade do imaginário pictórico que evocam e a sua promessa de abstração. É a possibilidade de desconstrução deste binómio que caracteriza a poética de João Marçal, e, consequentemente, une as pinturas presentes nesta exposição.

Oh My Dog!, com curadoria de Natxo Checa, está patente na galeria Minuta até 5 de novembro, sendo uma parceria da Galeria Zé dos Bois com a CMS.

Tiago Leonardo (Lisboa, 2000) licenciou-se em Ciências da Arte e do Património (FBAUL) e frequentou o curso de Jornalismo Cultural (SNBA). Atualmente está a terminar o mestrado de Estética e Estudos Artísticos, com especialização em cinema e fotografia (NOVA/FSSH) onde incide a sua investigação no pós-fotográfico dentro do contexto artístico português. No seu trabalho como escritor e colabora com diversas publicações; como o CineBlog do Instituto de Filosofia da UNL, a FITA Magazine, entre outras.

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