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Cindy Sherman em Metamorfose no Museu de Serralves

Cindy Sherman é um ícone da arte contemporânea, uma referência incontornável, sobretudo no campo da fotografia. Após mais de vinte anos, regressa a Portugal, com uma impressionante retrospetiva, desta vez no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, realizada em parceria com a The Broad Art Foundation de Los Angeles. A exposição, intitulada Metamorfoses, inaugurada a 4 de outubro e passível de ser visitada até 16 de abril, é densa, composta por uma extensa e notável seleção do espólio da artista, que abrange todo o seu percurso. A mostra constitui-se de modo dinâmico, desafiante e imersivo, qualidades que caracterizam a própria obra de Sherman. A curadoria é, assim, meritória de destaque. Assinada por Philippe Vergne e com coordenação de Paula Fernandes, faz jus a uma das mais brilhantes artistas do nosso tempo.

Sherman, embora reconhecida por trabalhar a partir da sua própria figura, afasta-se veementemente da fotografia de autorretrato. Aliás, como confessou a Philippe Vergne, quando se revê numa dada imagem, descarta-a. O seu objetivo é o oposto, ou seja, distanciar-se de si mesma e representar o outro. Desempenha, portanto, os papéis de fotógrafa e modelo, bem como de diretora e cenógrafa, sendo autora de produções dramáticas, metódicas e detalhadas, realizadas no seu estúdio e suportadas na tecnologia da fotografia digital. Assinale-se que, já em criança, a artista explorava a caracterização e a interpretação, adquirindo, desde cedo, uma considerável mestria na utilização e na manipulação de maquilhagem, roupa e adereços. O caráter performativo é-lhe, pois, inerente.

Na sua obra, Sherman convoca a máscara num sentido amplo, não somente físico e objectual, mas também figurado. Como identifica e expõe, a apresentação e a revelação ao mundo, por parte de todo o indivíduo, compreende um exercício de representação. O poder, o estatuto, a classe, etc. ostentam máscaras e são figurados através do retrato, método primordial de identificação e afirmação social da nobreza e da monarquia, mais tarde da burguesia (e com a fotografia, do povo), desde a Idade Média à sociedade moderna. Isto observa-se no início da exposição, com os Retratos Históricos que atravessam desde o século XVI ao início do século XIX. A partir daí e ao mesmo tempo, apresenta-se a História, tanto da cultura, como do poder e mesmo dos media. Assim emerge o trabalho da artista, tanto produto da ficção, quanto do real. Aliás, como defende, recorrendo a Agustina Bessa-Luís no prefácio do seu livro Metamorfoses (2007), a “metamorfose é o próprio instrumento da realidade”.

Tal conceito, que dá título à exposição, anuncia o processo artístico da Sherman: proceder à sua própria metamorfose para personificar as mais diversas personagens. Finda a produção fotográfica, convida e incentiva o espectador a uma imaginação e a uma interpretação livres, para as quais contribui a ausência de títulos das peças. Assinale-se, porém, que é possível identificar apropriações de estilos e temáticas, nomeadamente de grandes mestres da história da arte, como é o caso de David, bem como reconhecer figuras da literatura (embora nunca confirmadas), tais como Madame Bovary, Lady Chatterlay, ou Oscar Wilde, situando-se os três na terceira e última zona da exposição.

As fotografias de Sherman são, na sua maioria, como nomeia Philippe Vergne, portraits à charge, ou seja, retratos que partem de modelos e, embora não cheguem a classificar-se enquanto caricaturas, exageram as suas feições e imperfeições. O expoente máximo da figuração encontra-se, porém, na série Palhaços, que instala uma percetível tensão na “sala das máscaras”. Neste contexto, poderá convocar-se a Metamorfose de Franz Kafka que se debruça sobre o absurdo, a alienação, a opressão e a solidão, estados e realidades que irrompem particularmente dessas fotografias da artista. Ademais, essa obra reflete sobre a condição humana, questão transversal à arte de Sherman.

É ainda nessa sala, a segunda da exposição, que se encontra o trabalho mais antigo da artista, concretizado durante os seus primeiros anos em Nova Iorque. Fotografias de câmara analógica, a preto e branco, apresentam a mulher retratada e objetificada pela indústria do cinema. O mesmo tema aborda-se, posteriormente, sob a perspetiva da moda e, ainda, da pornografia. Destaque-se uma magnífica série, de 1976, cuja figura da mulher, capturada com um mesmo enquadramento e sempre em igual postura, sentada à espera do autocarro, denuncia e, simultaneamente, uniformiza os vários estereótipos instituídos pela sociedade.

A questão de género é, com efeito, recorrente, encontrando-se sempre mais ou menos evidente ao longo de toda a obra de Sherman. Esta é, aliás, uma das principais preocupações que a autora partilha com artistas da mesma geração, tais como Barbara Kruger e Sherrie Levine, também cruciais no contexto da fotografia e da arte contemporâneas. Uma outra problemática comum é o excesso de imagens, bem como a sua manipulação e utilização por parte dos mass media, com propósitos políticos e socioeconómicos.

Em suma, a exposição irrompe e estrutura-se sustentada num forte corpo conceptual, fruto de múltiplas relações discursivas, mas também estéticas. Emerge, assim, enquanto mostra particularmente desafiante, que constitui objeto de múltiplas experiências, inúmeras narrativas e infinitas leituras, para tal contribuindo a arquitetura do espaço que acentua o caráter dramático do próprio trabalho fotográfico, resultado de uma admirável transformação da ala esquerda do museu. Ou, dir-se-á, da metamorfose deste último.

Por fim, assinale-se o impressionante mural concebido para esta precisa ocasião e que encerra a exposição com uma beleza e um impacto visual ímpares. Nele se transpõe e conflui o que constitui uma das obras mais singulares e notáveis de toda a criação artística contemporânea, a arte de Cindy Sherman.

Constança Babo (Porto, 1992) é doutorada em Arte dos Media e Comunicação pela Universidade Lusófona. Tem como área de investigação as artes dos novos media e a curadoria. É mestre em Estudos Artísticos - Teoria e Crítica de Arte, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e licenciada em Artes Visuais – Fotografia, pela Escola Superior Artística do Porto. Tem publicado artigos científicos e textos críticos. Foi research fellow no projeto internacional Beyond Matter, no Zentrum für Kunst und Medien Karlsruhe, e esteve como investigadora na Tallinn University, no projeto MODINA.

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