aFesta d’aDrogaria
Foi através de Black, com Wonderful Life, que toda uma imagem de mundos paralelos, histórias incrédulas e imagens pitorescas se revelaram a quem visitou aFesta n’aDrogaria, no dia 1 de Outubro. Wonderful Life marcou o início da performance da artista Inês dos Santos, que integrou toda a equipa d’aDrogaria e decorreu durante vários momentos da exposição.
aFesta que se realizou no espaço de algumas horas, foi o quinto e último momento do ciclo de exposições d’aDrogaria, projeto co-dirigido por Beatriz Chagas, Francisco Correia, Manuel Fonseca, Nuno Pires, Sebastião Pires, entre outros artistas, curadores e “droguistas”, que conta com o apoio do Criatório, hospedado pela aSede Amarela, criada desde 2016, programadora cultural do espaço. A Drogaria da Corujeira – local de onde deriva o nome e se localiza o projeto – serve como laboratório de experiências culturais baseadas no conceito de Slow Curating, na demanda por reavaliar conceitos associados ao mundo artístico e na urgência de localizar o objeto artístico em outro contexto que não o institucional. Tal resulta na procura por diluir as fronteiras clássicas e românticas que definem a instituição museológica através do espaço, artista, obra e espectador. A exposição conta com a presença da artista Inês dos Santos, em colaboração com Nuno Pires no design e produção, Beatriz Chagas no registo e edição e Francisco Correia no guião.
A prática artística de Inês dos Santos oscila entre performance, instalação e escultura social através da análise sócio-política do que comemos e como comemos. Na sua obra, a artista cria contextos e estruturas sob as quais explora questões sociais como colaboração, assistência, generosidade e união, desenvolvendo a partir deste ponto uma dimensão prática e metafórica do processo de fermentação dos alimentos que n’aFesta se ilustrou pelos vários pães feitos pela artista, elevados ao estado de obra de arte, para serem consumidos durante a exposição. O seu interesse reside na troca de informação entre os alimentos e o meio envolvente, espectador, obra e objetos como uma torradeira, uma varinha manual para bater a manteiga e uma taça de metal, elevados, também, à condição de obra de arte através da sua colocação num plinto e semelhança expositiva. Para a artista, a fermentação funciona como um arquivo site-specific, um mapa único de pontos espaço-temporais que contam com uma relação microbiana constante e simbiótica ligando humanos e comida.
Inês dos Santos explora o modo pelo qual o processo de fermentação nos conecta ao nosso quotidiano, usando a comida como meio de percepção. Isto é identitário na performance que ilustrou a noção, através da acção da artista, onde esta fazia manteiga numa taça, para posteriormente a adicionar a um pequeno monte com flores comestíveis, situado em cima de um plinto à entrada da exposição. A artista, após terminar de bater a manteiga e de a juntar ao restante, cortava duas fatias de pão e colocava-as a torrar, terminando a barrar manteiga nas torradas. Foi impossível não notar o caráter cénico do acontecimento, através da roupagem da artista, o deambular pelo espaço expositivo, até à própria remoção das torradas com o auxílio de uma pinça em madeira, que culminou com um discurso de Francisco Correia, acompanhado pela iluminação de uma lanterna de mão e de um humor um tanto peculiar. Este agradecia aos intervenientes, familiares, vizinhos e até aos próprios animais de estimação que, tal como as obras que se iam mutando, “não [lhe] (…) perguntem como foi lá parar”.[1] Enquanto toda a performance decorria, era possível ouvir uma voz feminina que intervinha com algumas frases “segundo a ideia da «má língua», uma voz sem rosto que vai tecendo, constantemente, comentários mesquinhos sobre tudo e todos”[2]. O cenário serviu o propósito de Slow Curating, onde o espectador após cortar e colocar o pão a torrar, barrava-o com manteiga e adulterava as obras em exposição. Nesta base, a artista tece uma narrativa que especula sobre o papel da fermentação como arquivo, não só da vida microbiana, mas através do registo do lugar, tempo, experiência emocional e estética.
É através do Slow Curating que a artista ativa, explora e expõe o espaço museológico e a experiência expositiva, para um maior envolvimento por parte do público, o que conecta de forma direta e intencional o contexto e especificamente as noções de espaço, empregando processos relacionais e colaborativos da exposição para o espectador. Este método não se traduz necessariamente num espaço temporal, embora se encontre presente pelo modo como se relaciona. O processo inclui uma compreensão significativa do contexto imediato que opera através da artista e da obra, com o objetivo de investigar questões conscientes e inconscientes que afetam a vida quotidiana através da política cultural e poética do local. Tanto o espaço, o tempo, como o trabalho artístico e de colaboração comunitária promovem relações recíprocas, culminando em propostas abrangentes e resultados que podem ser investigados por diferentes pessoas em momentos distintos do processo. Processo este que é rizomático, orgânico, não-linear e que desafia continuamente a autoria, a experiência e a expressão estética pelo papel participante do espectador que acaba por se tornar a essência no processo. Aqui, o ênfase encontra-se na ativação, ou seja, o processo, o espaço entre o objeto artístico e o público e as nuances “epistemológicas encontradas no conhecimento e no não-conhecimento resultante”.[3]
Slow Curating assume um compromisso moroso, tanto nas noções temporais como conceptuais, adaptando-se refletidamente aos contextos sócio-políticos e históricos e que, como prática social e artística, prenuncia alternativas à museologia contemporânea e mapeia abordagens alternativas na mediação da arte vigente em contexto museológico.
É inevitável notar, em aFesta, o modo como o objeto artístico se apropriou do estado de obra de arte sem qualquer “associação à galeria ou a um espaço museológico”,[4] note-se a torradeira, o que decerto coloca em evidência a influência do sistema das belas-artes que não finda no limite físico do museu, mas se estende para lá da sua “esfera abstrata”. Esta influência faz-se representar de forma discursiva e democrática “pelo museu sem paredes.”[5]
Este quinto momento do projeto expositivo d’aDrogaria vai ao encontro da noção desenhada por Nicolas Bourriaud que informa que a arte, a partir da década de 1990, representou a interação do espectador e a sua integração com a vida quotidiana, revelando-se no objetivo de derrubar a barreira entre a obra, espectador e galeria – socialmente segregada na virada do milénio – e que ilustra a intimidade diretamente conotada entre a exposição e o tecido institucional.
Esta é uma evidência em aFesta que, através da sua postura crítica, danifica e subverte o espaço expositivo em prol da representação entre obra de arte, artista, espectador e instituição artística. É nesta marginalidade aparentemente ilusória que se constrói uma imagem permeável dos conceitos artísticos e museográficos, indagando sobre a possibilidade da arte e do objeto artístico se evadirem da sua própria história e valores tradicionais.[6]
[1] Citação que fez parte do discurso de Francisco Correia.
[2] Francisco Correia em conversa com o autor.
[3] Laermans, Rudi. “Teaching Theory and the Art of Not-Knowing: Notes on Pedagogical Commonalism,” Krisis: Journal for Contemporary Philosophy Issue 1, 2012, p. 63.
[4] Brian O‟Doherty, “The Eye and the Spectator”, in O’Doherty, Brian, 1986, Inside the White Cube: The Ideology of the Gallery Space Santa Mónica: The Lapis Press, pp. 39-49.
[5] Graham Coulter-Smith, “Introducción. El problema de los museos”, in Coulter-Smith, Graham, 2009, Deconstruyendo las instalaciones. Madrid: Brumaria A.C., p. 17.
[6] Walter van Rijn, “Disputed Terminology”, in Rijn, Walter van, 2015, Rethinking the status of the art object through distribution vol. 1, University of Southampton, pp. 31-33