The Kids are Alright: primeira desordem na Monitor
O que é o graffiti nos dias de hoje? Vários artistas, exposições, galerias têm nos últimos anos, em Portugal, por consequência de um mais alargado contexto internacional, procurado responder a esta questão – e em consequência redefini-la. De nomes que nos sobem de imediato à cabeça, temos o coletivo Underdogs, já reconhecido fora do país, ou exposições recentes como a Interferências no MAAT, que nos apresentou inúmeras perspetivas sobre esta questão. O que é certo é que o graffiti, mais que nunca, parece estar a fazer o seu caminho dos muros para dentro dos museus e galerias – a tornar-se valorizado pelos circuitos institucionais, a ser entendido, diretamente, como uma inspiração, referente visual inevitável. É certo que este fenómeno não é assim tão recente, mas parece-me, ainda assim, crescente.
The Kids are Alright, a mais recente exposição do duo de artistas primeira desordem, agora na Galeria Monitor, continua este caminho, não só se apercebendo, conscientemente, desta transformação, como reagindo a ela. O seu impulso de resposta parece ser a conversão do graffiti a escultura, forma mais que aceite, glamourizada, nas correntes culturais e institucionais. As obras brancas, apesar de aparentarem pedra, quase confundindo-se com as paredes da galeria, são feitas de esferovite, perecíveis. Há um sentido de ironia presente neste ato, a dureza inamovível que se percebe frágil, uma apetência satírica que percorre o trabalho do duo desde a sua formação; ainda assim, desvenda-se uma surpresa na aptidão da técnica empregue, o modo como a plasticidade imediata da tinta a spray, muitas vezes escorrendo pelas figuras que determina, é transferida para um objeto físico.
O imaginário é urbano, pop, violento, cómico, observam-se figuras como desabafos visuais – armas, falos, smileys,símbolos, verificando-se, por exemplo, títulos cómicos, emprestados de jargão, como Legalize Alverca, para uma obra que é representação de uma folha de marijuana. Há esta tendência pelo marginal, o provocatório, o imediato, e uma contínua referência a um contexto anglocêntrico, que não deixa de ser o globalismo através do qual, hoje, falamos. As obras terão sido baseadas em graffitis que os artistas foram encontrando por zonas da Grande Lisboa, atos que se poderão considerar criminosos, aqui convertidos a objetos de valor – o impulso de resposta a esta situação, a apropriação do que para uns pode ser crime, para outros, expressão artística, é inteligentemente ironizada pelos artistas através do uso dessa forma escultórica, que não os substitui nem anula, mas comenta.
A folha de sala da exposição salienta várias vezes esta ideia de crime que, de facto, acaba por se revelar, não no fazer das obras, mas na sua disposição – o modo como se multiplicam no espaço, aglomerando-se quase aleatórias, num vandalismo que se simulou às paredes da galeria. Essa simulação remete-nos de novo, circularmente, a essa transferência de poderes – o graffiti na sua redirecção para um contexto expositivo não detém a mesma leitura ou perigo de um desenho inscrito num muro, o seu propósito torna-se outro nas paredes de uma galeria, descontextualiza-se, institucionaliza-se, torna-se um vestígio oco. O branco com que se reveste parece ser outra marca disso mesmo, podendo levar-nos a inferir, numa primeira fase, se não poderá trazer consigo um sentido de apatia, a sua reconversão a uma solenidade branda, apropriação a lembrar o idealismo kitsch de um Daniel Arsham. Não acho que seja justa esta comparação pelo modo como as figuras aqui vibram, sempre expressivas, pouco óbvias, surgidas por uma tinta que se fez presença, alto-relevo: note-se, por exemplo, as curvaturas do Friendly Ghost, última obra, e peça chave no contexto da exposição – todas as peças são fantasmagóricas, a sombra de algo que não são verdadeiramente, mas tentam replicar. Para além disso, a consciência desse seu estatuto enquanto réplicas legitimadas, autoirónicas, revela-lhes a riqueza – The Kids are Alright fora também o título de uma canção dos The Who que na folha de sala se descreve como “hino para a subcultura Mod londrina, composta por uma juventude de classe média que, na década de 60, estando já a situação pós-guerra estabilizada e vendo-se, literalmente, “com dinheiro no bolso”, praticavam um estilo de vida boémio, guiados por um especial apreço à moda e à música, aos cafés noturnos, à vida cosmopolita e a tudo aquilo que era considerado moderno”. A mostra assenta-se neste comentário provocatório, autocrítico, mas que também é o mapa que lhe permite guiar-se.
The Kids Are Alright, de primeira desordem está em exposição na Galeria Monitor até 29 de outubro.