Rui Matos – A Sequência dos Dias na Sociedade Nacional de Belas Artes
Entramos no corpo da exposição A Sequência dos Dias, de Rui Matos, e somos subitamente acometidos por formas vibrantes em tons negros. Lineares umas, corpóreas outras, as esguias formas entrelaçam-se nas paredes, esgueiram-se pelos cantos, e volteiam ao longo do espaço da galeria.
Tanto se agarram às paredes altas e brancas da galeria como serpenteiam pelo espaço, num jogo de oposições entre côncavo e convexo, cheio e vazio, curvo e retilíneo.
As linhas horizontais, desenhadas na parede, ou esculpidas no ar, sustentam longas narrativas. Como numa partitura, pequenos elementos escultóricos vão-se sucedendo e pontuando o espaço em diferentes direções. Os seus eixos rivalizam entre si, não havendo um único elemento que se repita, mesmo que se aproxime, morfologicamente, do que o precede ou do que o sucede, ou lhe estiver mais próximo.
Cones truncados, cilindros dispostos de modo enviesado, metades de círculo ondeantes, que mais parecem línguas, despontam de estruturas metálicas, de modo autónomo, e em diferentes posições.
Nos objetos que se fundem, sobre as mesas, podemos ver formas que aludem a uma certa geometrização, outras que apelam ao orgânico. Na longa e grande mesa, compreendem-se elementos geométricos, e outras formas que mais parecem sugerir chifres de animal. Existem também orifícios na base que provocam a formação, no solo, de pequenos círculos de luz aleatórios.
É frequente, em toda a exposição, um jogo de sombras provocado pelas estruturas em metal, que, sinuosas sustentam esses artefactos. Bailados de linhas vão cobrindo a parede e conferindo às formas maior destaque.
Por outro lado, aludem a espaços arquitetónicos misteriosos, que habitam a nossa memória mais recôndita.
Existem pequenas entradas, ou “escavações”, que conduzem o olhar para o interior da matéria e, consequentemente para o binómio luz/sombra. Esses túneis vão abrir depois noutro lugar da peça, onde menos esperamos.
As estruturas de Rui Matos não foram feitas para serem previsíveis.
A forma como desafia o observador, e o surpreende, é liminarmente o que mais define o artista, e a sua maior coerência.
Na galeria despontam objetos que, pela sua posição no espaço, e pela ideia de ritmo, sugerem quase uma intertextualidade. Mas não é possível esquecer o que de único existe na matéria e que não pode ser traduzido em palavras. É na matéria que podemos centrar a nossa atenção. Como diria Filomena Molder é como se se tratasse apenas do que existe de concreto na matéria, digamos, a matéria que contém o seu próprio modo de comunicar, e que não pode ser descrita por palavras.
E ao longo da exposição são tantos os momentos em que a matéria dita tantas coisas que não podem ser transformadas em verbo.
E assim vão despontando as linhas, ora por meio de sombras ora por meio de luzes, ora ainda por meio de peças que evoluem no espaço e que lembram mobiliário modernista, será uma estante? E o outro mais além, uma mesa?
Serão estantes e mesas que pretendem prefigurar trocas simbólicas? Ou antes jogos semânticos que brotam da vida e do quotidiano dos homens?
Os jogos de luz e sombra perpetuam-se no espaço. Sombras próprias e sombras projetadas. Na realidade elas são, na exposição, verdadeiramente as protagonistas.
A alusão à transversalidade das disciplinas também é claramente visível. Há todo um jogo cenográfico, quer nas estruturas à escala humana quer nas pequenas maquetes coloridas que se fixam à parede. E que lembram um projeto mais antigo de Nuno Matos Thinking another scale. Nelas podemos construir enredos e imaginar narrativas. Ver personagens a pequena escala, a movimentarem-se e a gesticularem dando corpo a um drama ou uma história insolúvel. As paletas de cores das esculturas também nos deixam ambivalências sobre se se trata de pinturas ou objetos tridimensionais. Não fossemos leitores outrora ávidos de Clement Greenberg, ficaríamos confusos e com poucas ferramentas para deslindar o mistério.
Existe, inclusivamente um grupo de peças penduradas nas paredes que varia consoante as cores aplicadas.
Somos, por isso, estimulados a deslocar do imaginário do desenho puro para o imaginário arquitetónico, do arquitetónico para o escultórico, do escultórico para o cenográfico, do cenográfico para o pictórico, do pictórico para o arquitetónico/escultórico, e assim sucessivamente, e de uma forma absolutamente ágil, e sem qualquer constrangimento.
Era Tinguely, o artista das esculturas Métamatics, que dizia: “Il n’y a pas d’immobilite. (…) Cessez toute resistance au changement”. As superfícies pintadas de Rui Matos, ou as peças Configurações e Tell me stories, entre outras, evocam precisamente essa fluidez interdisciplinar.
As obras mais recentes do artista parecem, ainda, evocar a música, e o discípulo de Stockhausen, o compositor do séc. XX Cornellius Cardew, e a sua obra Treatise (1961), com as suas impressionantes partituras gráficas. Cornellius apelava à improvisação e ao sentimento de liberdade na interpretação da sua obra. Também podemos evocar Ponty, que, um certo dia, ilustrando este pensamento, terá dito: “a objetividade absoluta é um mero sonho”.
A Sequência dos Dias, de Rui Matos está patente na Sociedade Nacional de Belas Artes até 15 de outubro.