O Diário de Anne Frank
2022/2023, a 8 de Setembro, abre a nova temporada de programação do Teatro da Trindade/Fundação Inatel, com a estreia de o Diário de Anne Frank. 1942-1944 corresponde ao período em que Anne Frank, uma adolescente de 13 anos, esteve escondida com a família (o pai, Otto Frank, a mãe, Edith Frank e a sua irmã, Margot) um casal de amigos com o filho e um outro homem, no sótão dos escritórios de Otto, em Amesterdão, devido à perseguição do regime nazi aos judeus. Oito pessoas a viver escondidas num abrigo, durante dois anos, até serem descobertas pelos nazis e deportadas para diferentes campos de concentração. Só o pai de Anne Frank escapou à morte e reavendo o diário da filha, que morreu aos 15 anos no campo de Bergen-Belsen, dá-o para publicação em 1947.
Graças a testemunhos pessoais como este, relembramos a história, ficando aberta a possibilidade de repensá-la e de resistir aos grandes desafios que se impõem na actualidade. Essa é uma das mais valias desta adaptação ao teatro de O Diário de Anne Frank, na versão de Frances Goodrich e Albert Hackett e encenação de Marco Medeiros, que trata da reconstituição da vida destas pessoas e desse período da história a partir do diário de Anne, uma jovem a borbulhar de vida e altamente observadora. Entramos na sala e a forma como este espectáculo está montado do ponto de vista da cenografia (e da encenação, claro) catapulta-nos, imediatamente, para esse espaço circunscrito do abrigo. Sentados, ao nível dos nossos olhos, temos a zona tripartida do sótão, onde as pessoas vivem escondidas e, com elas, a partir desse momento também nós passamos lá a existir, na exaustão dos dias. No piso de baixo, onde vemos uma porta fechada de acesso aos escritórios, encontra-se a escada de madeira que leva ao sótão. E é nessa escada que Otto Frank (João Reis) explica, pela primeira vez à sua filha Anne, o seu plano de isolamento forçado e afirma-lhe que “Não interessa. Não podes passar aquela porta, nunca.” Está a referir-se à porta de acesso ao espaço interdito, ao ar livre da rua, onde a cada momento poderão irromper as tropas nazis, ou por desleixo ou por denúncia. Acima do sótão, na parede, temos um ecrã gigante, onde passam imagens de diferentes ângulos do abrigo, a que não conseguimos aceder a partir do palco, e imagens do diário de Anne Frank, onde podemos perceber a sua caligrafia e algumas fotografias. Este acesso ao que agora nos é dado ver, cria-nos uma sensação de intimidade com algo que nos era distante. Há um cruzamento temporal que se joga neste espaço cénico e que nos confronta, de forma subtil, com o sistema de clivagem mental que usamos como mecanismo protector da nossa mente. Estamos a assistir com a distância do espectador ou estamos, afinal, a viver o lado emocional de uma realidade que nos assombra e nos assusta? Não sabemos bem onde nos situar. Estamos no espaço intermédio entre aquilo que perspectivámos através da história e aquilo com que somos confrontados agora. A brutalidade de uma vivência incompreensível para nós, mas em que vamos penetrando, pouco a pouco, ao longo deste espectáculo. E para isso muito contribuem as excelentes prestações de todos os actores. Beatriz Frazão (Anne Frank) mantém, ao longo de toda a narrativa, um nível estonteante de sobriedade na interpretação, difícil de igualar. A de uma adolescente a viver constantemente sob tensão, mas que revela traços de uma personalidade sonhadora, cheia de si e de energia, com todas as características que assumimos serem próprias da sua idade, e que ainda tem a proeza de nos mostrar as mudanças interiores e de maturidade que ocorrem nessa fase da sua vida. A encenação de Marco Medeiros é inteligente. Os constantes diálogos cruzados das várias personagens, em divisões diversas do abrigo, ilustrando uma proximidade claustrofóbica, as permanentes desavenças por exigência de negociação das diferentes necessidades quotidianas, todas essas opções de encenação são postas (ou apostas) à proporção exacta entre o ponto de saturação do espectador e o ponto de percepção do que possa ter sido a vivência em clausura num período de perseguição em massa. Marco Medeiros consegue manter-se, com uma precisão arriscada, no fio da navalha, sem o menor desequilíbrio ou indício de cair num único lugar comum. Uma difícil tarefa se tivermos em conta a carga histórica deste espectáculo.
O Diário de Anne Frank ficará em cena até 13 de Novembro.
Jini Afonso não escreve ao abrigo do AO90.
Ficha Artística:
Versão Frances Goodrich e Albert Hackett
Tradução Ana Sampaio
Encenação Marco Medeiros
Com Anabela Moreira, Beatriz Frazão, Carla Chambel, Catarina Couto Sousa, Diogo Mesquita, João Bettencourt, João Reis, Paulo Pinto, Rita Tristão da Silva e Romeu Vala Cenografia F. Ribeiro
Figurinos Maria Gonzaga
Música e desenho de luz Marco Medeiros
Produção Teatro da Trindade INATEL