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O realismo cotidiano de José Pedro Cortes e o imaginário fantástico de Mané Pacheco

Inauguradas na mesma noite, as exposições Patrícia de José Pedro Cortes e Bestas de Mané Pacheco apresentam-se, respetivamente, na Galeria Francisco Fino e no Belo Campo, espaço autónomo situado na cave onde ficava a antiga adega da Francisco Fino.

Encontramos Patrícia na primeira sala. As quatro projeções em vídeo que integram a instalação de José Pedro Cortes apresentam recortes da rotina de treinamento de Patrícia Mamona, atleta de triplo salto que quebrou recordes e conquistou a Medalha de Prata para Portugal nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021.

O artista acompanhou e registou os treinos de preparação de Patrícia para o evento. Nota-se a precisão e concentração da atleta, que ignora a presença da câmara a observá-la de perto. Seu corpo trabalha com consciência naquilo que lhe é conhecido e familiar. Planos aproximados dos movimentos de repetição e força, em meio a saltos e equipamentos, revezam-se nas projeções enquanto das colunas de som ouvimos o som do ginásio ao fundo.

Entre pausas e momentos de descanso, Patrícia trabalha com um objetivo, estendendo os limites do seu corpo em ritmos que se alteram ao longo do tempo. As projeções variam em diferenças subtis de enquadramento e nas cores dos objetos que a acompanham nesta rotina, confundindo-nos quanto ao passar dos dias. A iluminação da exposição dá-se apenas a partir das imagens projetadas e, ainda em uma das paredes da galeria, um conjunto de fotografias retratam instantes cruciais do momento da competição.

Do realismo cotidiano de José Pedro Cortes partimos à ficção dicotómica de Mané Pacheco. Descendo as escadas ao fundo da Galeria Francisco Fino está Belo Campo. Escondido, o espaço ativa de início o mistério do desconhecido que envolve Bestas, exposição de Mané Pacheco, que conta com sete obras produzidas em 2022.

No primeiro momento, Besta é um convite a penetrar o imaginário fantástico da artista. A instalação feita com cordas, correntes, tiras de borracha e ferragens de metal remete ao universo BDSM e a relações de dominação. O cheiro da borracha intensifica a atmosfera ritualística. Besta é a única peça que não se apresenta sozinha, as articulações dos corpos suspensos em equilíbrio preenchem a primeira das três salas do Belo Campo.

A exposição convoca a mitologia amazónica em torno da Seringueira (Hevea brasiliensis), conhecida também como árvore-da-borracha, que produz o látex do qual é feito o material frequentemente utilizado pela artista nas suas criações. A folha de sala conta com fragmentos dos folclores próprios das comunidades amazónicas, contadas pelos seringueiros acreanos, que trazem as lendas da Seringueira; superstições e criaturas que assombram aqueles que não respeitam o ecossistema e as entidades da floresta.

Mané Pacheco apresenta uma reflexão pós-extrativista que coloca diferentes tipos de relações em confronto. Materiais orgânicos e sintéticos – como ninhos de vespa e cabos de fibra ótica – marcam dualidades, mecanismos adversos e complementares no encontro do natural com o artificial. As suas criaturas híbridas e seres desconhecidos assombram ao mesmo tempo que seduzem o espectador, direcionando o movimento do corpo e do olhar pelo percurso. Somos atraídos pela iluminação da última sala, que se encontra na penumbra, não fosse a luz que emana do Bich’ de 3 cabeças e ambienta também Feral II, refletindo e ampliando a sua fantasmagoria.

De um retrato cotidiano, uma imersão naquilo que é habitual e conhecido adentramos em seguida ao universo oposto, do que é extraordinário e misterioso. Consciente e inconsciente, realidade e fantasia, presença e fuga. Certas coisas se conectam pelas relações de oposição.

Patrícia está patente na Galeria Francisco Fino até ao dia 15 de outubro de 2022 e Bestas no Belo Campo até ao dia 28 de outubro de 2022.

Ana Grebler (Belo Horizonte - Brasil) é artista, curadora e escritora. Graduada em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG - Escola Guignard) e pós-graduada em Curadoria de Arte na Universidade Nova de Lisboa (FCSH). Participou de exposições coletivas no Brasil e organizou as exposições Canil (2024), Deslize (2023) e O horizonte é o meio (2022), em Lisboa. Colabora com a Umbigo Magazine com ensaios, críticas e entrevistas, e atua nas parcerias internacionais da plataforma. Na intersecção de práticas, reflete sobre a cultura visual contemporânea criando diálogos e imaginários entre espaços e processos artísticos em cruzamento. Atualmente vive e trabalha em Lisboa.

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