Colaboração e Companheirismo: Ponto d’Orvalho 2022
A terceira edição do Ponto d’Orvalho teve lugar nos dias 16, 17 e 18 de setembro na Herdade do Monte e na Quinta das Abelhas, em Montemor-o-Novo. O festival, mediante o seu programa multidisciplinar, pretendeu esclarecer as várias formas através das quais os seres humanos podem aprender a pensar – e eventualmente viver – como uma floresta. A proposta deste encontro quis convidar os participantes a desvendar as diferentes maneiras como estes ecossistemas altamente complexos, mas frágeis, podem estimular uma sensibilização mais profunda para as diferentes teias de interligação entre os vários seres.
Se o pensamento das florestas acabou por constituir o tema principal do festival, durante o primeiro dia de Ponto d’Orvalho, a transmissão oral, quer em narrações ou canções pareceu ser o meio escolhido para veicular o conhecimento, as ideias e os sentimentos. O primeiro ato do festival foi o discurso intimista de Peter Bastiaan, músico e especialista em permacultura nascido na Suécia, mas que vive no Alentejo há mais de três décadas. Sentado numa rocha, com o público à sua volta em semicírculo, as suas palavras misturaram notas autobiográficas e histórias sobre a região e as suas árvores, estabelecendo o mote para uma noite calma e dedicada à escuta. Seguiu-se uma bebida de boas-vindas e a primeira refeição comunitária. Como é sabido, a maneira como certos alimentos estão a ser produzidos pode ameaçar tanto as pessoas como a natureza. E, ao estarmos numa região onde o solo e o ambiente continuam a ser profundamente afetadospela agricultura intensiva, seria razoável esperar um nível particular de atenção não só em relação aos ingredientes dos menus, mas também em relação à sua proveniência. A este respeito, todas as refeições vegetarianas propostas pelo chef Diogo Noronha, em colaboração com a Cooperativa Minga, responderam plenamente às expetativas. Cada prato foi composto por uma seleção de ingredientes oriundos da agricultura regenerativa e provenientes de produtores locais, cozinhados em surpreendentes – e deliciosas – combinações, que pareceram falar de culturas culinárias passadas e futuras.
Concluído o jantar, Coby Sey estreou o palco musical com uma apresentação intimista, especificamente pensada para o festival. A primeira parte do set foi uma série de canções onde Sey tocou o baixo cantando com o seu caraterístico tom soulful. No segundo momento do concerto, o artista sentou-se no chão para adicionar mais instrumentos à sua paleta – drum pad, sintetizador e efeitos – e começou a cantar em estilo spoken-word. O resultado foi que a intensidade da performance cresceu consideravelmente e o seu som se aproximou do espírito mais experimental do seu novo álbum Conduit. Por fim, o ator José Pimentão concluiu a noite com a leitura de Menina não pensa de Djamelia Pereira de Almeida, conto sobre a resiliência e emancipação feminina, escrito especificamente para o festival. A oportunidade de observar ao final da noite uma multidão escutando um ator a partilhar um conto antes de dormir, sem qualquer suporte visual a não ser as estrelas no firmamento, foi um dos momentos mais inesperados e memoráveis do evento.
O segundo dia começou cedo, muito cedo – às 6:00h da manhã – mas não obstante, um número surpreendentemente grande de pessoas havia acordado para testemunhar Night-Dew de Isabel Costa e Violeta Azevedo, performance que combinou música e teatro para homenagear Irmavep, personagem feminina do primeiro filme Les Vampires. A performance começou com Azevedo a criar loops de notas sustentadas, enquanto Costa, disfarçada de morcego, começou a aproximar-se lentamente à música. Quando as duas artistas se encontraram uma ao lado da outra, o momento de suspense culminou quando a Azevedo separou os lábios do instrumento para beijar a outra intérprete.
Após o pequeno-almoço, António Mira e Gabriela Albergaria dirigiram um passeio pela Herdade, onde os dois se revezaram. O primeiro partilhou os seus conhecimentos como biólogo e especialista sobre a região, e a segunda falou sobre a importância fundamental dos passeios ao ar livre na natureza para a sua prática como artista. O dia prosseguiu com três workshops diferentes por Gabriela Albergaria, Inês Neto dos Santos e Duarte Valadares.
À medida que o sol se punha, o público avançou em direção à Barragem do Barrocal, lago agora relativamente raso devido ao verão longo e quente. Neste cenário, Inês Tartaruga Água e Xavier Paes apresentaram uma performance de cortar a respiração em três atos que não poderiam ter mais em comum com o local escolhido. Com o público sentado na margem arenosa do lago, os dois artistas aproximaram-se de um kit de bateria improvisado composto apenas por pratos de diferentes dimensões, montados em cima de ramos recolhidos na zona. A poucos metros de distância do seu instrumento de percussão DIY, começaram a “tocar” atirando pequenos seixos aos pratos – alternando os sons agudos dos acertos aos silêncios dos lançamentos falhados – ou diretamente para a água, usando o lago como uma vasta pele percussiva. No segundo ato, utilizaram três grandes tubos metálicos e tocaram-nos com baquetas de bilro. No entanto, o ato final consistiu numa improvisação com um instrumento de cordas DIY amplificado – uma bacia com quatro cordas e um microfone – cujas frequências foram manipuladas não apenas pelos diferentes efeitos de pedal a que estava ligado, mas também pela quantidade de água do lago despejada dentro dele.
Depois do jantar seguiu-se o concerto de Hatis Noit, uma vez que a apresentação de Duarte Valadares foi cancelada devido a lesão. A cantora autodidata japonesa, servindo-se apenas da voz, guiou o público numa experiência musical transcendental, onde o seu impressionante alcance vocal combinou subtilmente referências musicais de diferentes estilos e épocas, mas sem nunca perder a singularidade do seu timbre. É importante mencionar um momento verdadeiramente especial durante o set: enquanto interpretava uma das suas canções, um curioso louva-a-deus saltou para o microfone e mais tarde para a mão esquerda de Noit. Ao perceber a pequena intromissão no palco, em vez de reagir excessivamente, Hatis gentilmente cedeu ao desejo do inseto de seguir de perto a atuação e deixou-o ficar com ela até o final do tema. Quando o concerto terminou, Chima Hiro tocou um set eclético que fechou o palco musical.
No domingo, terminado o brunch, rumámos à Quinta das Abelhas, um projeto de Marc Leiber na Herdade do Freixo do Meio, onde estuda o desenvolvimento e implementação de sistemas agroflorestais na região alentejana. Atendendo às paisagens secas e monótonas que vi ao longo do percurso até Montemor-o-Novo e o que aprendi nos dois dias de festival sobre os efeitos das monoculturas agressivas e da seca extrema no solo da região, senti-me reconfortado e esperançoso ao ver tanta biodiversidade e árvores jovens nesse mesmo ambiente. Após um momento onde Marc Leiber nos apresentou o seu projeto e princípios básicos da agricultura sintrópica, Inês Neto dos Santos iniciou a sua performance alimentar, acompanhada pelo coro feminino Ecos do Monte, entoando canções tradicionais alentejanas. A artista começou a performance distribuindo ao feijões verdes e pães cozidos por ela. Depois disso, convidou todes a começarem a retirar as sementes das vagens, para que a artista pudesse colher todas as sementes e começar a fazer um molho esmagando-as com óleo e alho. O resultado foi depois partilhado com o público e comido com pão. Se a palavra companheiro vem do latim e é formada por duas palavras, cum+panis, (literalmente, com + pão) para descrever aqueles com quem se parte o pão, podemos dizer que esta atuação encerrou o festival com um momento de companheirismo e colaboração em torno do ritual de partilha da comida.
Quanto mais estudamos a natureza, mais nos apercebemos de que a tendência é a associação e a colaboração. Por isso, a cultura tem ainda muito a aprender com a interligação do mundo natural. Neste sentido, ao reunir numa escala íntima um grupo heterogéneo de pessoas que trabalham em diferentes disciplinas e estimulando colaborações entre elas, o Ponto d’Orvalho abordou o seu tema norteador (Pensar Como Uma Floresta) não tanto em cada gesto individual, mas mais como um grupo de vozes diversificado e coeso, a partir do qual um jogo harmonioso de relações e afinidades se desdobra durante – e depois – do festival. Neste sentido, podemos dizer que o Ponto d’Orvalho tem conseguido absorver um dos ensinamentos que a cultura pode aprender com a natureza, e parece estar decidido a aprender nas edições seguintes outras noções que o aproximará não só à capacidade de pensar, mas também de agir como uma floresta.