Top

Entrevista com Joana Siquenique, autora da capa do mês

Mafalda Ruão entrevista Joana Siquenique, autora da capa do mês de setembro da Umbigo, trazendo consigo um trabalho pleno de cor, transparências e movimentos. Uma cinesia de ilusões óticas que percorrem desejos, intimidades e memórias passadas. Com a exposição LOTE 17 prestes a inaugurar, a artista revelará no espaço expositivo, a harmonia que existe no detalhe do irregular, do imprevisível e familiar, e da avó; aquilo que viveu a Joana naquela casa da infância, e também cada um de nós, à sua maneira.

Mafalda Ruão – A tua produção artística é viva e energicamente visual – falo em cor, forma, movimento. O que reside na tua obra para além desse imediato magnetismo visual?

Joana Siquenique – Existe uma clara atração por esses elementos e procuro criar diferentes tipos de ilusão de ótica e perceções cognitivas que surgem através da manipulação do material e/ou objetos utilizados. Depois a conjugação com elementos como a cor, transparências, sobreposições e movimento permitem explorar outras possibilidades.

Quando era pequena tive ambliopia, uma condição ótica para a qual fiz um tratamento que consistia em resolver diferentes exercícios práticos usando uns óculos com filtros coloridos que bloqueavam a cor dos desenhos. Isso fazia com que eu não conseguisse ver realmente o exercício, no entanto permitia-me ver diferentes sobreposições de imagens e cores, umas desfocadas e outras não, consoante o olho que fechava. Fazia ainda outro tipo de exames óticos, mais comuns, que usam várias imagens coloridas que se vão igualmente sobrepondo. Estas experiências pelas quais passei, são algo que ficou comigo e que comecei a reparar e a procurar em diferentes situações e elementos no dia a dia.

MR – Dirias que existe um elo de ligação, isto é, uma narrativa que perpassa as tuas criações?

JS – Não o diria, ainda que individualmente todas as peças, além desta ilusão de ótica mais evidente, tenham uma narrativa por trás, dependendo do processo criativo, que tanto pode partir de um objeto ou material que me interessou, como pode ser resultado de uma ideia completamente desejada e planeada antes de construir. Por exemplo, em Wavy green tudo começou pelo material, encontrei os tubos e adorei a sua forma; e o facto de os pôr a rodar fez-me lembrar quando em pequenos abanávamos o lápis ou a caneta em frente dos olhos e, magicamente, parecia que o material duro se tornava maleável. Este tipo de pequenas memórias estão bastante presentes em mim e são igualmente importantes no processo.

MR – Falavas em movimento e de facto ele é uma presença frequente nos teus trabalhos, seja ele na forma de rotação (Lazy eye, 2020), de cinesia aleatória (Wavy green, 2020) ou mesmo de um movimento sugerido pela própria construção (Iron lace, 2014; After the eating contest, 2020; Íris, 2022; Cinetica.mente, 2015). É consciente esta atração pelo movimento? O que pretendes comunicar através dele?

JS – O movimento é, como dizes, uma constante no meu trabalho, seja ele sugerido através de um jogo de cores ou de formas que nos iludem o olhar, ou assumido através do uso de motores. É de facto um elemento fundamental que me permite brincar com a nossa perceção, um dos componentes principais que viabiliza a criação destes jogos de ilusão que desafiam o olhar. É, portanto, e conscientemente, um meio para atingir um fim.

MR – Por falar em movimento e debruçando-nos sobre a sua oposição – Inert series, 2017 é talvez, de todas as tuas peças, aquela cuja materialização, ainda que envolvendo uma manipulação da tua parte, se afirma pela forte conexão à natureza, pela sua observação e pela captação de algo que um dia saiu dessa mesma paisagem. Quais foram as tuas inspirações para este trabalho?

JS – Curiosamente este trabalho começou também com o material, o cobre veio de uma bobine que os meus tios tinham e que eu acabei por comprar, porque me interessava a sua maleabilidade, cor e brilho. Estive muito tempo a pensar o que poderia fazer com ele até que me fez sentido, de certa forma, devolver o material à sua origem. Fiz uma instalação no campo onde procurei este contraste do material inerte, que é extraído da terra e transformado, com a natureza que tem o seu movimento orgânico e fluído com o vento. Interessava-me também conseguir camuflar as varetas nas ervas criando esta incerteza do que nos é apresentado e do que estamos realmente a observar. A instalação é depois complementada com o molho de varetas como se tivessem sido colhidas.

Acaba por levantar, a meu ver, certas questões problemáticas em relação à forma como continuamos a explorar os recursos naturais da terra e as condições a que as pessoas que trabalham nessas indústrias se têm que sujeitar.

MR – Há algumas obras em particular que, suscitando um lado mais íntimo, parecem dirigir-se especificamente a alguém – Em memória do seu jardim, 2019 e Comparei-te com uma rosa, 2022; e ainda uma terceira na qual invocas diretamente a tua avó – Dezanove Primaveras na casa da avó, 2016. Existe alguma relação entre elas? Podes desvendar o contexto pessoal que está na sua origem?

JS – A relação que existe entre elas é que são todas sobre a minha avó. Foi uma pessoa muito importante para mim, ensinou-me muito, inclusive a fazer todo o tipo de bordados, tapetes de Arraiolos, a costurar. Ela cuidava muito bem do seu jardim, que estava sempre lindo cheio de flores coloridas. É frequente falar sobre a minha avó nos meus trabalhos, porque realmente teve uma presença muito forte na minha vida, marcou-me bastante, sendo estas peças, de certa forma, homenagens. Nestas obras em particular, usei algumas referências que já mencionei, como o tipo de flores que mais gostava no jardim em Em memória do seu jardim; a série das rendas para LOTE 17em que trabalhei alguns dos naperons que ela fez e Desanove Primaveras na casa da avó é uma fotografia de um vidro de uma janela da casa.

MR – Precisamente LOTE 17 é a tua primeira exposição individual no MU.SA – Museu das Artes de Sintra, que inaugura no próximo dia 23 de setembro. Num local que já te é familiar, como é voltar desta vez em nome próprio e o que nos podes revelar mais sobre a série que apresentarás nesta ocasião?

JS – Lote 17 é a casa dos meus avós e esta exposição é uma homenagem ao que representa para mim esse lugar, uma casa de família onde tenho muitas memórias, inclusive onde vivi. Para esta exposição procurei agregar algumas dessas recordações e trabalhar sobre elas, tentando recriar um pouco o ambiente acolhedor e de conforto que sinto lá. Tem muitas referências, como o próprio espaço e o conteúdo da casa que trouxe agora, de uma forma mais intimista, para o espaço expositivo.

Para esta exposição desenvolvi a série das rendas, que comecei no final do ano passado. Os seus padrões e as suas particularidades em relação ao desenho geométrico inicial, que serve de guia, e a transformação mais orgânica que surge quando são reproduzidas manualmente foi o que me chamou a atenção. Além disso, podemos observar em cada buraco uma forma irregular diferente, ou seja, existem tantos detalhes e tanta informação visual; e isso é que torna estas peças tão interessantes. Tive também um convidado especial que trabalhou comigo e vai fazer parte de uma peça que é o meu avô.

MR – 2022 é um ano que já conta com quatro exposições: Depois do Banquete (Lisboa, Pt), If Only (Lisboa, Pt), Parce Qu’on Sème (Brosses, Fr) e, por estrear, LOTE 17; e ainda uma residência artística (Arraiolos, Pt). O que se segue este ano e quais os planos agendados para o futuro?

JS – Num futuro próximo, em outubro, vou fazer um curso de moldes cerâmicos. Gosto bastante de aprender e desenvolver técnicas que me podem ser úteis no meu trabalho. O facto de ter um processo de aprendizagem de forma descomprometida torna o processo criativo bastante livre.

Quanto ao futuro, diria que vamos todes esperar para ver!

Mestre em Estudos Curatoriais pela Universidade de Coimbra, e com formação em Fotografia pelo Instituto Português de Fotografia do Porto, e em Planeamento e Gestão Cultural, Mafalda desenvolve o seu trabalho nas áreas de produção, comunicação e ativação, no âmbito dos Festivais de Fotografia e Artes Visuais - Encontros da Imagem, em Braga (Portugal) e Fotofestiwal, em Lodz (Polónia). Colaborou ainda com o Porto/Post/Doc: Film & Media Festival e o Curtas Vila do Conde - Festival Internacional de Cinema. Em 2020 foi uma das responsáveis pelo projeto curatorial da exposição “AEIOU: Os Espacialistas em Pro(ex)cesso”, desenvolvido no Colégio das Artes, da Universidade de Coimbra. Enquanto fotógrafa, esteve envolvida em projetos laboratoriais de fotografia analógica e programas educativos para o Silverlab (Porto) e a Passos Audiovisuais Associação Cultural (Braga), ao mesmo tempo que se dedica à fotografia num formato profissional ou de, forma espontânea, a projetos pessoais.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)