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To go to: Jorge Queiroz e Arshile Gorky na Gulbenkian

Na Fundação Calouste Gulbenkian surgiu a proposta de colocar em diálogo a obra de Jorge Queiroz e de Arshile Gorky. Numa cenografia especial, a exposição apresenta desenhos e pinturas de ambos, que tocam nas expressões do surrealismo, da abstração e do simbólico. Mas o que fez acontecer a associação entre dois artistas de gerações e culturas tão distintas?

O lapso geracional sugere que viajemos no tempo, entre o passado e o presente (ou vice-versa), e deambulemos pela mostra inevitavelmente à procura de semelhanças e dissonâncias entre os dois. Gorky (Khorkom, Arménia, c. 1904 – Sherman, Connecticut, 1948) foi o último dos surrealistas e o primeiro a dar passos no expressionismo abstrato, e Queiroz (Lisboa, 1966) é um dos artistas contemporâneos com mais sucesso em Portugal, expondo ativamente desde 1989 e com obra espalhada por diversas coleções públicas e privadas. Sabemos pela folha de sala que havia o desejo por parte da curadora, Ana Vasconcelos, de criar um diálogo entre estes dois artistas. Consequentemente, Jorge Queiroz foi convidado a conversar com a obra de Arshile Gorky, tendo um papel ativo no desenvolvimento da exposição e participando tanto na seleção de desenhos e pinturas de Gorky como na cenografia do espaço expositivo.

A experiência inicia-se no primeiro passo que damos dentro de to go to, onde sentimos a diferença nos pés, no chão amarelo esponjoso que cobre todo o espaço expositivo. Na sala de exposições, os desenhos e as pinturas foram expostos em todas as paredes, deixando no centro um vazio que salienta o espaço e a arquitetura do edifício. Este vazio é para o espectador, que percorre toda a exposição deixando o rasto dos seus passos. São apresentadas quarenta obras, quinze de Arshile Gorky e as restantes de Jorge Queiroz, com exceção de um pequeno busto em madeira de autor desconhecido (colocado logo no princípio da exposição). Os desenhos e as pinturas criam um circuito, expostos intercaladamente, e as linhas temporais de Queiroz e Gorky sobrepõem-se, criando um espaço cronológico comum.

De Gorky, o que vemos são maioritariamente desenhos, feitos a grafite, lápis de cor ou cera, onde predominam as linhas finas e negras e o traço rápido e ágil. Vemos apenas três pinturas: a primeira de 1944, com o título Garden of Wish Fulfilment, depois Ante-Medusa de 1944 e, por último, Last Painting (The Black Monk) de 1948. Em Garden of Wish Fulfilment, Gorky transfere a energia do desenho para a tela a óleo, balançando a composição com linhas finas a preto e manchas de cor (preto, vermelho e amarelo), numa pintura onde as formas assentam num fundo texturizado de cor esbatida. Ante-Medusa destaca-se pelo seu rosa-salmão (uma cor ausente de qualquer outra obra em to go to), mas sobretudo, pelo seu traço a pincel grosso. Aqui, as linhas finas ausentam-se e as manchas inundam a superfície da tela, aumentando consequentemente a escala dos elementos pintados. Last Painting (The Black Monk) encontra-se no final da exposição (que também é o princípio), e julga-se ser a última obra de Gorky, por ter sido encontrada ainda no cavalete após o suicídio do artista em Julho de 1948, aos 44 anos. O negro da tela é trágico, e as pinceladas seguem o mesmo estilo de Ante-Medusa: são traços e manchas largas que contornam o fundo da tela, criando figuras biomórficas. Vemos também rápidos apontamentos a vermelho, verde e amarelo. É uma pintura gestual e agressiva, de leitura confusa e emocional, uma antítese aos desenhos de linhas finas e delicadas que Gorky tinha executado até então. Nestas duas últimas pinturas, Gorky aproxima-se intensamente ao expressionismo abstrato e aos seus contemporâneos Willem de Kooning ou Pollock.

Gorky experienciou em criança o genocídio do povo arménio, vivendo como refugiado com a sua mãe e três irmãs. Acabou por perder a mãe precocemente em 1919, consequência de desnutrição, mudando-se para os Estados Unidos um ano depois – uma sucessão de eventos traumáticos que o moldaram psicológica e artisticamente. Nos Estados Unidos privou com os surrealistas André Breton e Roberto Matta, que contribuíram para a maturação do seu estilo, introduzindo-o ao automatismo psíquico: uma forma de desbloquear o traço do desenho das limitações e vontades da consciência. As obras de Gorky apresentadas em to go to, são do período de 1940, considerada a sua fase de maturação artística.

Jorge Queiroz iniciou a sua carreira pelo desenho, trabalhando muito sobre papel; aos poucos começou a introduzir a cor por camadas de tinta, o que o levou a mudar de superfície de trabalho e a passar a adotar a tela. Em to go to, a maior parte das obras de Queiroz são pinturas de 2010 até ao presente. Com intensas sobreposições de tinta e de cor, Queiroz trabalha entre a abstração e a figuração, parecendo seguir a via do automatismo psíquico. O pincel é frenético, mas rigoroso, as composições têm várias camadas e profundidades, e as figuras seguem diferentes escalas. É um ambiente mágico e sonhador, onde por vezes o título acrescenta simbolismo à imagem que assistimos, como a obra Na clareira os teus olhos (2020) ou em Sopro quente e calafrio (2020), onde as palavras iluminam o caminho para nos relacionarmos com a pintura. É ainda de realçar o uso que Queiroz faz da cor amarela, indispensável para contornos e manchas que elevam os elementos desenhados. O preto das paredes da galeria intensifica o amarelo da pintura, e o chão funciona quase como um íman de cor que direciona os nossos olhos para o movimento das telas.

Os poucos desenhos que aqui apresenta, mostram-nos um outro lado de Queiroz, talvez mais sombrio. Os dois desenhos Sem título de 1999 e 2000 (expostos lado a lado), feitos a lápis e grafite, mostram-nos silhuetas de pequenas figuras com corpo, mas sem rosto. Estas personagens são híbridas e intensas, flutuam no papel entre as sombras, num ambiente que lembra o sonho e o surreal. As manchas são realizadas com sucessões de riscos, o desenho é ansioso e evoca uma atmosfera fantasmagórica. São, sem dúvida, os trabalhos que mais se aproximam de Arshile Gorky.

Jorge Queiroz e Arshile Gorky, fazem uso de uma linguagem abstrata pessoal, com sugestões de elementos concretos, reais, que se movimentam pela tela entre a harmonia e a intensidade da cor. Apesar de gerações e culturas distintas, unem-se em to go to pela essência do automatismo psíquico, num ambiente íntimo e surreal que é acentuado pela dramática cenografia do espaço expositivo.

To go to está patente na Fundação Calouste Gulbenkian até ao dia 17 de outubro de 2022

Laurinda Branquinho (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

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