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Viver a sua Vida, Georges Dambier e a Moda

Viver a sua Vida, é uma exposição que reúne fotografias de moda de Georges Dambier.

Patente no Museu Nacional do Traje, e com curadoria de Anabela Becho, revela-nos um conjunto de imagens realizadas pelo fotógrafo durante a década de 50.

São imagens que nos mostram o ambiente em que o fotógrafo trabalhava. Dambier, para fotografar as modelos, saía do espaço do estúdio e ia para a rua. Não raras vezes vemos modelos com trajes bem cintados nas suas fotografias, quase como se fossem elas próprias formas geométricas, ou esculturas vivas e articuladas, no meio do mundano, do quotidiano parisiense, do movimento fugidio das ruas. A imagem da modelo Ivy Nicholson, pousando uma peça Dior, no meio da Place Vendôme é disso exemplo. Ou Sophie Litvak, outra modelo, fotografada para a revista ELLE, em 1953, numa pose inclinada, acentuando, na composição, uma diagonal descendente, algo intimista. O fundo deixa entrever uma bicicleta que se dissipa, e dilui no enquadramento da imagem. Cortada pela “moldura” da fotografia, equilibra a composição, e quase evoca o termo da desterritorialização da imagem em Deleuze, ou os quadros dentro dos quadros, ou o sistema fechado, e as suas várias dimensões. Sophie Litvak ainda aparece noutra fotografia, introspectiva, alheia ao bulício da cidade, no centro da Avenue Gabriel, a ler um jornal, e envergando uma vestuário da marca Lanvin-Castillo. Um elemento aqui ou ali, como um carro estacionado, um fragmento de um edifício que se deixa revelar, uma cadeira esguia em ferro, vão acentuado o recurso a linhas diagonais, horizontais e verticais para o equilíbrio da fotografia. A própria Litvak aparece ligeiramente inclinada.

Também Nina, a modelo sorridente que surge enquadrada na Quai-Alma Marceau, alude à forma modernista e geometrizante. A imagem de Nina centrada na fotografia, foi publicada na ELLE de 1955, a modelo envergava um Tailleur-Capa Tweed chocolate e uma saia justa da Balenciaga.

É impressionante a coleção de imagens realizadas em 1958, sobretudo na Nazaré. Gunilla e Barbara Mullen, são duas modelos que colaboram com Dambier. Pousam elegantemente, na vila, alheias ao que se passa à sua volta. Olham para outros lugares, além da objetiva, e do fotógrafo. Absortas na atenção para qualquer outro ponto da paisagem, objeto ou forma.  Ou mesmo para dentro si.

A mulher é retratada não somente como objeto do fotógrafo, não apenas como deleite para a vista, ou por causa de uma certa beleza, nem tão pouco porque se trata de modelo para suporte de vestuário, mas também porque parece representar uma versão da mulher, emancipada, dotada, apropriando o termo, de um certo “dandismo” no feminino. Numa atitude ou espécie de culto de si mesma, como diria o poeta Baudelaire, quando falava da figura do dandy. As mulheres de Dambier são senhoras de si mesmas, misteriosas, e independentes.

Não raras vezes, nas fotografias de Dambier, as roupagens que as modelos envergam denunciam cortes fluídos, geometrizações acentuadas, e configurações modernas, no entanto, ao mesmo tempo, manifestam uma austera contenção.

Também ao dandy de Baudelaire, no masculino, não era pedido mais do que a “simplicidade absoluta”. O mesmo, deslocava-se, pelas ruas de Paris, com elegância, leveza e altivez.

Curiosamente, apesar da modernidade das figuras, da elegância, da distinção, e por vezes da pose aristocrática, as modelos apresentavam, nas fotografias de Dambier, uma certa melancolia no olhar. Tal como os protagonistas descritos por Baudelaire. É como se o fotógrafo quisesse sobressair a alma das modelos, além das roupas que vestiam.

Dambier, com sabedoria, distanciava-se do papel de voyeur, e era, como qualquer fotógrafo de rua, um flâneur.

Mas o seu olhar é eticamente contido, e respeitador da condição da mulher. Por outras palavras, enaltece-a, cobrindo-a de individualidade e vontade própria.

O fotógrafo emanava assim o mesmo espírito do flâneur, mas atribuindo às protagonistas das suas estórias visuais, uma vida, um movimento, uma atitude igualmente contemplativa e de descoberta.

As modelos de Dambier, são altivas, voluntariosas e opinativas. São joviais e atrevem-se a sonhar. Não raras vezes olham para horizontes ténues e longínquos.

Cosmopolitas, as modelos são como “mulheres na multidão”, ou “mulheres do mundo”, rebuscando novamente o termo a Baudelaire no seu livro “Os pintores da vida moderna”, quando falava de homens do mundo. Reproduzem o modo de ser do fotógrafo, também ele um homem do mundo.

Existe, para Sontag, em todo o fotógrafo, esse sentido de apreender o mundo e de o conduzir à derradeira verdade. O de ser capaz de compreender “o modo e a razão misteriosa e legítima de todos os seus costumes”.

A fotografia em que aparece Barbara Mullen, trajando um vestido da marca Triconyl, às riscas, de colarinho grande, é um exemplo dessa apreensão. Por detrás, em ambiente marítimo, as poses estáticas das pessoas com trajes populares evidenciam essa preocupação, quase etnográfica, de incluir o novo no antigo, o gosto internacional no tradicional.

O fotógrafo esconde-se atrás da fotografia, de modo anónimo, incógnito, como novamente esse flâneur do livro de Baudelaire, que tanto se embrenha no “inconstante, no movimento, no fugitivo e no infinito”. Um esforço imparcial, como diria Sander, o fotógrafo mencionado por Sontag: “Não é minha intenção nem criticar, nem descrever estas pessoas”.

A própria Sontag comentava que “a câmara faz com que todos sejam turistas na realidade alheia”, e em alguns casos turistas até de classe, ao juntar as diferentes classes sociais. Como por exemplo, voltando às imagens da Nazaré, que parecem de certa maneira integrar esta categoria.

Gunilla surge, na sua ligeireza de acrobata, a sugerir movimento, um movimento que se anuncia a qualquer momento, e que se estende para lá da moldura da imagem. Há uma geometrização na pose. Os pés da modelo, numa ligeireza de pierrô, e as pernas ligeiramente abertas, formam um triângulo na composição da fotografia. Além do sorriso generoso e alegre que se estende além da objetiva do fotógrafo.

Em acentuado contraste, e de modo algo surrealista, um pouco mais atrás de Gunilla despontam pessoas naturais da Nazaré envergando trajes tradicionais.

As mulheres surgem, no fundo, em trajes armados e claustrofóbicos.  As suas vestes são pouco arejadas, e tapam a feminilidade. A sua estaticidade e gravidade contrasta com a mobilidade das modelos, que envergam roupas feitas de materiais leves, alguns casos algodão, que era um tecido arrojado e inovador para a época.

Sontag, no seu ensaio sobre a fotografia, realça a tendência surrealizante das imagens fotográficas, sobretudo as obtidas ainda no século XIX. Ou a fotografia de rua, que geralmente se serve do grande contraste, e que busca o inusitado, o imprevisto, o exótico, o espontâneo. O que não pode ser explicado por palavras.

Existe ainda, além das várias séries de fotografias de George Dambier, a instalação de uma peça sonora, contida numa dependência contígua ao Museu. Nela ouvimos a voz de Anabela Becho, descrevendo os contornos de uma peça de vestuário. A autora da peça refere tratar-se de “uma peça que pretende evocar um vestido, ou um meta vestido, composto por vários vestidos, e foi construído com uma narrativa, pontuada por alguns sons também evocativos do acto da construção de um vestido”.

Viver a sua Vida, de Georges Dambier está patente no Museu Nacional do Traje até 30 de outubro.

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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