Construir um mapa
Orientar-se num novo edifício exige o domínio do espaço numa espécie de movimentação cartográfica. Seja mental, seja impresso, seja digital, mais materializado ou mais intangível, o mapa é um instrumento fundamental – isto é, constitui uma peça auxiliar na construção dos fundamentos, das fundações de uma relação entre visitante e lugar visitado – na orientação através dos lugares. Ao anunciar-se como entidade projetada para pensar as artes digitais, o Museu Zer0 convoca para um sopesar de categorias não só opostas como aparentemente inconciliáveis: museu-lugar, arte evanescente, material e imaterial. Os mapas, porque se relacionam ao mesmo tempo com a conceção de um espaço, ideia e lugar, parecem integrar uma dessas categorias – é necessário, pois, começar do início, do nada: o primeiro mapa é o Zero.
Nuno Lacerda (n. 1983) foi o artista convidado pelo Museu Zer0 para, concebendo o reconhecimento de um lugar, mapeá-lo numa peça videográfica, naquilo que é um começo de cartografia. Finalista do prémio Sonae Media Art em 2017 e vencedor de um dos prémios Proyector2019, Lacerda insiste, na sua videoarte, na caracterização do espaço (pessoal, ambiente) para a construção de ideias cartográficas. Já em Mapa Museu (2014), um curto vídeo com sonoplastia de Tiago Durão, montara um conjunto de tomadas de imagem em vários locais diferentes do Centro Cultural de Belém,(projeto de Vittorio Gregotti e Manuel Salgado inaugurado em 1992) em Lisboa, procurando imaginar uma “arquitetura suspensa no espaço e no tempo”. Uma das razões invocadas por Nuno Lacerda para a escolha daquele lugar foi a “sua configuração peculiar, de espaços com diferentes escalas, ligações e jogos geométricos”, que o levou a querer “construir um puzzle visual complexo”. O Museu Zer0 existe, no presente, enquanto processo de procura associado a um lugar geográfico particular – os silos da Cooperativa Agrícola em Santa Catarina da Fonte do Bispo, perto de Tavira, no Algarve; edifício projetado nos anos 50 do século XX pelo arquiteto modernista algarvio Manuel Gomes da Costa; mas existe também em antecipação do verdadeiro uso desse lugar (já que as instalações, em parte ainda utilizadas pela cooperativa e a aguardar remodelação e adaptação ao museu, não são, neste momento, visitáveis enquanto museu).
À semelhança do seu trabalho de há oito anos com o CCB, a obra de Lacerda para o Museu Zer0 parte da tomada de imagens de um edifício, de um lugar geográfico identificável, pelo qual o artista se desloca, reconhecendo e dando a ver; no entanto, ao contrário de “Mapa Museu”, o “mapa mundo” do Museu Zer0 é tanto o reconhecimento de uma pré-existência quanto a instituição de um inédito e ainda inabitado lugar. Quando, em 1998, afirmou que “fazer mapas é fazer mundos”[1], Donna Haraway poderia estar a caracterizar a peça de Lacerda: o Mapa Zero não é (apenas) a representação de um mundo: é a própria ação de edificar esse mundo. Esse fazer de mundos a partir de mundos já feitos passa por uma desconstrução da imagem do que existe: resultado, Mapa Zero (tal como Mapa Museu) é uma coleção de vários vídeos filmados nos silos de Santa Catarina, montados – num excelente, muito rigoroso trabalho de edição – em várias dimensões e diferentes posicionamentos, exibidos numa tela elevada dentro da nave da Ermida de São Roque, em Tavira. A imagem que o visitante tem ao entrar na ermida é sobretudo uma imagem de dinamismo e, inicialmente, de um labirinto que se percorre: as diferentes molduras de sequências vão surgindo e desaparecendo da tela, recolocando-se na relação de umas com as outras (as vizinhanças geométricas dos vários retângulos marcam um tempo, como que raccords entre planos diferentes), mimetizando o percurso do homem que percorre os corredores, as escadarias, os espaços interiores e exteriores do futuro-presente Museu Zer0. Passeia-se por dentro do edifício da mesma maneira que o espectador tem de fazer passear o olhar pelos vários retângulos, num deambular imparável que o loop do vídeo acentua. O homem na tela, porém, ao contrário do que está a olhar para ele, tem a liberdade de surgir do nada, de descer uma escada quando parece que a sobe, de caminhar de cabeça para baixo, de saltar de um vídeo para o outro, como se de um lugar-tempo para outro, contíguo – possibilidades que lhe dá a arte cinética, num abracadabra que Lacerda pontua quando a sua personagem encarna um cómico de slapstick.
Um mapa pode ser entendido como a representação e, através dela, o estabelecimento de limites, de delimitações ou de fronteiras. Em Mapa Zero, as imagens e o dinamismo com que estão montadas e surgem na tela é um modo de elidir essas limitações, de conferir ao espaço existente a imaterialidade com que, afinal, tem de saber lidar, pois é traço constitutivo da sua matéria museológica. Nos mapas vê-se aquilo que frequentemente se não pode vislumbrar fora deles – a terra plana, por exemplo, o contrário da gravidade, a horizontalidade desafiada, uma visão panorâmica de que o olhar humano é incapaz. Também isso se cumpre em Mapa Zero, sem jamais fazer perigar a ligação às escassas faculdades do espectador. Consegue manter esse elo, por exemplo, porque cumpre como que uma sequência narrativa em que o vídeo se faz cúmplice do passeio pelo edifício construído: apesar do loop, é possível cumprir uma linha narrativa, uma vez que se identifica o início e o final do vídeo, que começa com tomadas feitas ao nível do chão, no exterior dos silos, prossegue em ascensão dentro dele e termina com a expansão do horizonte, de novo no exterior, no topo do futuro-presente museu.
Nos seus dez minutos exibidos no centro de um templo de resto dessacralizado e de paredes nuas, a peça de Nuno Lacerda ergue uma catedral, isto é, institui a imagem de um museu. Fá-lo, também, porque questiona, desestabiliza, cria no espectador a sensação de vertigem, de aceitação de um modo de cartografia e movimento pelo espaço que caracterizam a pulsão artística. Mas tudo isso consegue, igualmente, por se posicionar para além da videoarte, ou de uma simples amostragem do que se filmou. Reclama mesmo uma interrogação sobre a sua própria categoria, ao incluir como ponto de fuga de quase todas as sequências a coreografia do visitante daquele museu em futuro que ali se presentifica, a figura do próprio artista a encarnar uma persona abstrata – logo, ficcional, resultado da construção de uma ideia de arte.
Mapa Zero, de Nuno Lacerda, é produzido pelo Museu Zer0 com o apoio do Município de Tavira. Ocupa a Ermida de São Roque, no centro de Tavira, onde pode ser vista até 30 de setembro de 2022.
[1] “Deanimations: Maps and Portraits of Life Itself”, Caroline A. Jones & Peter Galison (eds.), Picturing Science Producing Art. Routledge, p.182.