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Programar o espaço: The ghost in the machine

As artes digitais são o objeto principal do Museu Zer0; a própria designação do Museu projeta a ideia de uma nulidade que leva a refletir, precisamente, acerca da inexistência, da ausência, do que se define enquanto não-presença, não-materialidade. Uma das consequências de se pensar um lugar museológico na sua qualidade de não-espaço pode ser a atomização dos espaços com ele relacionados – e, através desse processo, a multiplicação dos lugares de museu. Ainda assim, enquanto instituição, lugar instituído, o Museu precisa de se entender e afirmar enquanto edificação. O local que habita, ainda em reconstrução, reabilitação ou renovação, são os silos da Cooperativa Agrícola em Santa Catarina da Fonte do Bispo, a Noroeste de Tavira, meio caminho entre a costa onde se ergue a cidade e o barrocal algarvio. É um território descrito na apresentação do Museu Zer0 como “ainda sobretudo agrícola, em vias de desertificação” – ou seja, um lugar em processo, cuja definição não é estática, mas mutável na direção de uma desaparição.

Parafraseando a afirmação de Roberto Calasso ao abrir do século XXI, pode dizer-se que os deuses são “hóspedes fugitivos” das artes. Serem fuggevoli implica que podem dispersar-se por onde quer que seja – tal como eles, também as musas se deleitam em percorrer os lugares, habitá-los de fugida, impregná-los da sua passagem, ocultarem-se, como se brincassem às escondidas. Gerados pela imaginação humana, os deuses e as musas ignoram fronteiras que sejam materiais, engendradas, erigidas, concretas. Desprezam, pois, o próprio conceito de limite, de definição ou definitivo. Tudo lhes é fluído, a caminho entre o pretérito e o porvir.

Em How Computers Imagine Humans, 2017, João Martinho Moura projeta o ser humano conforme este se constrói dentro e a partir das máquinas de pensar. O rosto é o que define o humano, é o elemento que o computador investiga e procura replicar. Martinho Moura – que trabalhou com o Museu Zer0 em 2019 – recorre a dois computadores, que vão lendo um no outro imagens humanas integradas, enquanto duas câmaras canalizam para a projeção nas paredes o resultante dessa espécie de leitura. Além do rosto – ou o que é reconhecível como tal –, o que se vê nas telas dos computadores face a face e nas projeções são traços indistintos, abstratos, não identificados com nenhum aspeto humano, ou até natural. Mas são tanto fruto do computacional quanto os “rostos”, que resultam, afinal, de “matemática e probabilidades” e constituem uma “virtualidade virtual, sem alma, sem história, sem memória”[1]. Os rostos são ante-humanos, ou pós-computacionais, fantasmagóricos na sua incompletude ou, sobretudo, no ganharem existência através do fluxo imagético que os compõe, infinito.

A instalação de João Martinho Moura ocupa a grande capela lateral do edifício do Convento de Santo António, local escolhido para a extensão de Espaço/Programa, a mostra de Arte Computacional preparada pela edição de 2022 da Bienal de Cerveira e exibida em Loulé em coprodução com o Museu Zer0. A curadoria esteve a cargo de Miguel Carvalhais e Luís Pinto Nunes, que assumem, no texto de apresentação do catálogo preparado para Vila Nova de Cerveira, não adotarem uma perspetiva historicista, apesar de terem selecionado obras de artistas de gerações diferentes: além da instalação de Martinho Moura (n. 1986) e da de Mariana Vilanova (n. 1996), Evoking a Simulated Past, 2020, apresentam-se ainda Três mapas (quase um atlas), 2018, de Ana Carvalho (n. 1970), Wolfmachine Cerveira, 2020-2022, de André Sier (n. 1977) e Seis 6, 2022, de Pedro Tudela (n. 1962) com Miguel Carvalhais (1974).

Desde a entrada do convento, How Computers Imagine Humans é o segmento menos visível, porque lateral e menos iluminado, da exposição; mas, por isso mesmo, parece funcionar como um órgão interno, as inteligentes entranhas do organismo que é a exposição – que pode ser entendida enquanto organismo, quer pelo conjunto das cinco instalações naquele espaço em particular, quer pelo facto de não se associarem as componentes aos vários autores, sublinhando-se, assim, a emergência de cada ecrã, cada computador, cada coluna de som ou de luz como parte interrelacionada com as restantes. Quando se entra, percebe-se, na nave principal do templo dessacralizado e para lá do painel de apresentação, um conjunto de telas, de tubos iluminados e de sonoridades, que transformam os vãos do antigo convento num lugar preenchido pelo espírito das máquinas, dos sons, da luz e das imagens. Não são apenas os produtos, por assim dizer, que integram cada instalação, mas também os mecanismos que as possibilitam: Evoking a Simulated Past, 2020 (cujo título convoca o fulcro de pensamento histórico/a-histórico que apontei acima) é composto pelas imagens, em díptico, de dois projetores que ocupam um duplo lugar correspondente na parede oposta à dos ecrãs – sobre módulos de madeira que os sustentam e lhes dão a altura suficiente para o retângulo projetado se alçar acima do chão na parede contrária, os dois projetores são peças de arte, a arte computacional que consubstanciam, a razão pela qual operam. É impossível transitar pelo espaço desta exposição sem integrar, também, esta proposta de Mariana Vilanova.

Adentrando-se na nave, vê-se, no verso do painel de apresentação, Três Mapas (Quase um Atlas), 2018. Ana Carvalho oferece um “mapeamento”, uma cartografia feita de sons e imagens, “ficções imprecisas”, em cuja criação estiveram envolvidos “explosivos indutores de sismos artificiais que provocam vibrações sonoras”[2], entre outras tecnologias. A arte computacional, para Miguel Carvalhais (citado no catálogo por Rosemary Lee), “centra-se na relação estética na computação” – diferencia-se do recurso instrumental e meramente pragmático a computadores e algoritmos, e afirma-se no modo como estes meios se tornam parte indissociável do corpo, do organismo estético. É a proposta que se subentende também da instalação de André Sier, que ocupa, aqui, a zona dedicada ao altar – mas que se encontra igualmente dispersa por outros lugares geográficos onde ainda é possível detetar, em Portugal, a presença de lobos. O lobo do título da instalação (a Wolfmachine, essa máquina lupina) instaura-se como presença ausente, afirmação através do perigo do desaparecimento, existência que o computacional capta, para o qual alerta, no interstício da sua arriscada coexistência com o humano. O altar é o lugar por excelência da celebração, o fundo do edifício que invoca, desde logo, a atenção do visitante – que, apesar desse chamamento, é avisado do perigo de olhar diretamente para as emissões a laser: comungar da sacralidade da arte computacional desafia os limites do humano; invadir o espaço da natureza selvagem que os lobos significam e que, nesta peça, surgem como maquete, pode pôr-nos em risco.

O Espaço é um Programa – o Espaço distingue-se do Programa. Estas são duas proposições para que aponta a barra oblíqua do título da exposição, cuja forma, na instalação conjunta de Pedro Tudela e Miguel Carvalhais, é replicada em seis lâmpadas tubulares, inclinadas e suportadas por outras tantas estruturas metálicas. Acesas, a iluminar e a pontuar todo o espaço intermédio da nave principal do edifício, relembram a relação afinal de uma quase inconsútil aproximação, afinal de uma insuperável separação, entre o Criador e a Criatura, entre tempos mensuráveis e a eternidade; entre o Homem e a Máquina.

Espaço/Programa, está patente no Convento de Santo António até ao dia 10 de setembro.

 

 

[1] Conforme consta da descrição no catálogo Espaço/Programa – Arte Computacional, Bienal de Cerveira, 2022, p. 85.

[2] Idem, p. 67.

Ana Isabel Soares (n. 1970) é doutorada em Teoria da Literatura (FLULisboa, 2003) e ensina desde 1996 na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UAlgarve). Integrou a equipa de fundadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Interessa-se por literatura, por artes plásticas e por cinema. Escreve, traduz e publica em revistas portuguesas e internacionais. É membro do Centro de Investigação em Artes e Comunicação.

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