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Revelar a Ideia da Morte

Em maio de 2021, num de muitos momentos centrais da pandemia de COVID-19, o compositor sueco Mårten Jansson gravou, com os ensembles vocais VOCES8 e Apollo5, a orquestra sinfónica Philharmonia e a soprano britânica Anna Dennis, a partir dos versos de Charles Anthony Silvestri, a belíssima peça Requiem Novum. Deu forma atual a uma das mais antigas missas católicas pela alma dos defuntos. Terá sido um modo de se relacionar artisticamente com o que assolava o mundo, com a sensação de ver ensombrecidas as vidas, o saber, o ser humano. Entre os diferentes momentos da oração pelos mortos para que Deus lhes dê repouso – o requiem, tradicionalmente composto por cinco partes –, foram incluídas as palavras de Silvestri. Ao poema que, por assim dizer, faz a ponte entre o “Sanctus” (a glorificação do Senhor) e o “Pie Jesu” (o apelo a Jesus), chamou o autor “I Stand Upon a Landscape of Infinity”. Marca o momento em que, na contemplação da morte, porque percebe a ausência de horizonte, o Ser reconhece e glorifica, em Deus, o Infinito – marca igualmente as estrofes em que mais se acentua a ideia de luz, de iluminação (divina, das almas?).

A exposição de um conjunto de obras gráficas de Bertílio Martins e Vasco Célio no Convento do Espírito Santo, em Loulé ganhou o título Permaneço numa paisagem do infinito. A referência direta à composição de Jansson e Silvestri aponta para a reflexão acerca da ideia de Morte, tópico que, conforme explicitam os materiais de divulgação, estrutura a mostra. O repto foi lançado aos artistas pelos curadores Miguel Cheta e Mirian Tavares (que assina o texto da folha de sala) para a criação de peças em torno dessa ideia: faz sentido, portanto, que aquele verso de Silvestri dê à mostra o mote.

Distribuídos pelas quatro salas da galeria municipal, exibem-se quatro grupos fotográficos de Vasco Célio, cujo currículo profissional e artístico é já consistente (mais recentemente, foi o representante português no projeto Europe at Home), e três de desenhos, gravuras e monotipias de Bertílio Martins. Às peças em suporte relativamente tradicional e fixadas nas paredes, acrescentam-se três instalações que, pelo seu caráter não convencional, se demarcam do gesto mais habitual que faz exibir imagens em galerias de arte. A primeira encontra-se na sala mais obscurecida, a segunda que o visitante encontra quando entra na galeria pela porta principal. Do lado esquerdo de quem entra, um expositor comprido sustenta uma sequência de oito pequenos e variados visualizadores de diapositivos – percebe-se, então, a razão para o ensombrecer do lugar, que permite ver com mais nitidez as imagens incluídas em cada aparelho: fotografias do sol, feitas por Vasco Célio. As outras duas instalações, de Bertílio Martins, ficam no piso inferior da última sala – na parede, duas filas de gravuras (cinco mais duas) à altura de uma escada de madeira encostada à parede; no chão, sobre um plano elevado, uma série de monotipias, cada uma coberta por uma folha de papel vegetal amovível. Nas três instalações, pede-se ao visitante mais do que a mera observação: debruçar-se, encostar os olhos aos dispositivos de visualização de diapositivos e comungar, como numa câmara escura, da imagem daquele que não se pode olhar de frente; subir à escada para, de facto, ver as imagens penduradas, pois, desde o chão, o seu tamanho reduzido no centro da moldura desmesurada dificulta a perceção; agarrar, a medo, uma das extremidades de cada transparência e observar o desenho que, debaixo dela, se desvela, que apenas assim se desvela e exibe as formas de ossos, excertos de um esqueleto que prende o Ser à existência sensível. São momentos de revelação ativa do sujeito que observa: de si mesmo enquanto observador; do que vê naquelas peças em particular, em relação às quais é necessário que aja; mas igualmente de tudo o mais que pode ver e revisitar nos outros elementos que compõem a exposição. É que a noção de revelação é fulcral nesta mostra, assim como é central no entendimento sobre a morte: o fim revela o Ser, seja no seu desaparecimento físico, seja no questionamento da realidade que permanece. Morrer é, de alguma forma, ser captado para uma permanência, abandonar o plano da inconstância e da mutabilidade.

Duas das imagens que mais me impressionaram – para lá do quase lúdico com que os artistas espicaçam a ação do visitante, assim retirando ao tema o seu caráter menos convidativo, até antipático – são dois autorretratos de Vasco Célio que, tal como as instalações, contaminam o olhar de quem visita e conduzem-no pela totalidade das obras. Numa e na outra, o plano fecha-se sobre o rosto do fotografado. Uma das fotografias, sobre-exposta à luz, exibe-o de olhos fechados; a outra é como que o negativo da primeira (ou o seu positivo e aquela o oposto), e nela o rosto surge de olhos abertos. A proposta é que se veja a morte como um rasgar de horizontes, uma anulação das expectativas mais familiares: assim, o que por norma se associa a fechar os olhos, à poética noite escura, é a imagem de olhos abertos; ao passo que a luz, na sedução do seu excesso – como dizem os versos de Silvestri – abre a possibilidade de ver “the Presence, / glowing with impossible light”, a Presença do Ser naquilo que está para lá da contingência humana, terrena e viva. Numa e noutra imagem, os olhos de quem vê precisam de ajustar o foco, mas enfrentam os extremos da sombra e da luz, os pontos em que vida e morte se tocam e se transforma uma na outra. Diz a voz poética no Requiem de Jansson: “Drawn into the Light, / I fade, I lose myself” – atraído pela Luz, perco-me de mim: num perder que é uma forma de libertação, de transposição dos limites do indivíduo.

É esta amálgama de contrários, sustentada pelo diálogo cúmplice entre a tendência para a iluminação e o movimento na direção da ausência de luz, entre o claro e o escuro que dominam as obras da exposição, que dirige a pulsão estética nas monotipias, nas gravuras e nos desenhos de Bertílio Martins: manchas brancas sobre fundo negro ou nuvens escuras sobre fundos brancos, o labor da forma e do conteúdo em transmutação permanente, sem que nem uma nem outro se fixem ou definam uma predominância. O traço é um borrão, o borrão o traço. A linha da vida o caos da morte, o caos da vida alinhando a morte.

Uma “paisagem de infinito” sugere ainda a ideia de paisagem: em algumas das fotografias das salas iniciais marcam presença imagens cuja característica colorida parece negar a coesão do branco e escuro, mas que, no jogo da vegetação densa que as habita, revela um Paraíso de sombras e brechas de claridade.

Figurar a morte não é necessariamente uma interrogação de angústia. Parece ter sido esse um dos eixos do desafio que Miguel Cheta e Mirian Tavares colocaram a Bertílio Martins e Vasco Célio. A resposta é vívida, sem ser evasiva. Frontal, ao mesmo tempo que convida o visitante a edificar um labirinto de subtilezas. Uma das dificuldades da criação em grupo – neste caso, da exposição dupla – é o da harmonização. De uma exposição a dois pode esperar-se que seja articulada, através do trabalho conjunto, da partilha de suportes ou formatos. Ora, apesar da autonomia criativa de cada artista em relação ao outro, e possivelmente pela força da colaboração reflexiva com os curadores, Permaneço numa paisagem do infinito surge como trabalho comum. Nele, afinal, é a Ideia que sobre-vive, muito para lá, muito depois de as formas, que se dissipam na memória, terem morrido.

Permaneço numa paisagem do infinito, exposição de Bertílio Martins e Vasco Célio, com a curadoria de Miguel Cheta e Mirian Tavares, está patente ao público até 10 de setembro na Galeria de Arte do Convento do Espírito Santo, em Loulé.

Ana Isabel Soares (n. 1970) é doutorada em Teoria da Literatura (FLULisboa, 2003) e ensina desde 1996 na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UAlgarve). Integrou a equipa de fundadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Interessa-se por literatura, por artes plásticas e por cinema. Escreve, traduz e publica em revistas portuguesas e internacionais. É membro do Centro de Investigação em Artes e Comunicação.

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