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What was, now becomes na Brotéria

A mais recente exposição temporária na Brotéria submete-se a um desafio interessantíssimo: como fazer uma exposição sobre um músico? What was, now becomes não nos apresenta obras de Ruy Coelho, mas recontextualizações da sua obra e vida pelo olhar de artistas contemporâneos. Mais, ou menos, literais nas suas abordagens, a mostra compõe-se numa lógica poética, abstrata, própria, transcendendo a homenagem.

Entramos com 2011 draw_03 de Tomaz Hipólito, quadrado desenhado a caneta preta sob uma folha de papel, cujo vinco, manifestação de uma anterior dobra, o faz levantar do chão como um sopro. É das poucas obras que não se faz acompanhar de um texto dialogando com Coelho – a sua simplicidade parece anunciar apenas uma vibração, na música sentida, no visual imaginada, que se anunciará. Sentinel de Rodrigo Amado pega-lhe na forma, também quadrada, mas angular, tridimensional, fotografia da curva de uma parede, rugosa, texturada. Conta-se em texto um episódio da vida de Coelho em que uma ópera da sua autoria, à beira da ruína por falta de verbas, foi salva por um tal Dr. Amado. O diálogo que se efetua, inesperadamente, parece pegar no nome do autor e não no conceito da obra, deixando o sonho à nossa imaginação – não há medo de arriscar.

Ao longo da sala – e como perceberemos mais tarde, ao longo de todo o edifício – vemos plantas, flores desenhadas na pequena finura de uma superfície de tela que parece camuflada nas paredes, e abelhas que as procuram, sempre algo distantes, fazendo-se da galeria, o campo. Etéreo, naturalista, mas deslocador, este é o Bouquet de Inês Wijnhorst – porque também a música se compromete a transportar-nos para um outro lugar. Ouvimo-la, delicada, em composições de cordas que esvoaçam, sentimentais. Chegam-nos a esta sala, mas vêm de um espaço adjacente, da instalação de Francisca Aires Mateus, Melodia do Amor. É de uma coluna moderna, brutal que se sentem as vibrações. Vemos também dois ecrãs paralelos, cenário campestre em que duas mulheres, estáticas, se dispõem uma por cada ecrã, ambas alheadas à música transmitida nos auscultadores que nos são concedidos, onde se canta a debilidade. Francisca expõe ainda LN, já na volta à sala principal, a última obra sem texto, onde um conjunto de linhas paralelas se mostram como uma pauta ou uma estrada: cordas, acordes. A secção termina com Event > Add Title > Add people > Save de Blanca Bercial, obra audiovisual estranha, ritmada, onde alguém escreve WIP (acrónimo de work in progress) numa máquina de escrever, ofuscada sob retângulos pretos que nos querem impedir de ler, alienada sob o som que não acompanha o movimento das mãos – obra que é processo, tentativa de espelhamento dessa libertação que Coelho experienciou com Santa Rita pintor num dia em Paris, quando procuraram viver em total liberdade, comendo quando tinham fome, dormindo quando tinham sono, processo também longo, sem fim para além do caminho. Destaca-se, aqui, uma frase, pensamento síntese da exposição, narrado pelas conceções de Santa Rita pintor: “não aceitava que, se a música tinha cores, a pintura não tivesse sons”.

Saindo da galeria propriamente dita, percorrendo a livraria à entrada, encontraremos o lado oposto do edifício onde, agora, se encontra uma outra obra de Tomaz Hipólito: uma aglomeração de vários quadrados, agora reais, escultóricos, emitindo leds, mas sufocados por pequenos tubos de PVC preto – ofuscamento e revelação, a primeira ópera que Coelho viu aos 15 anos, clandestinamente, sem dinheiro, esgueirando-se pela porta dos artistas no Teatro São Carlos.

A maioria das ligações obra/texto vai de encontro a interpretações subjetivas, abertas, mas divergentes – acompanham a heterogeneidade de Coelho, os contrastes entre estéticas quase tocam nas aparentes contradições da pessoa (pelo menos, aos olhos de hoje), mas não lhe chegam – enquanto homenagem, de facto, não faria sentido complexificar desse modo a figura de Coelho, aludir aos ideais conservadores, nacionalistas em que operou, numa exposição que se pretende tributo positivo, rememorante. A imagem que rege as obras é a de um homem determinado, vanguardista (porque a exposição foca-se, sobretudo, no homem e não a obra), no fundo, a que queremos recordar, e permanece.

Esse deslocamento que as obras guardam, espelho da rutura de Coelho é, surpreendentemente, partida aos bocados quando entramos no café do edifício para ver De zero a três mesadas em Berlim de Fernando Martins. Observarmos, primeiro, uma obra que se apropria, literalmente, do título do texto que a acompanha. Obedece à história contada, como um poster de um filme que é aqui texto (lembra-nos que esse texto também ocupa, nesta mostra, o espaço de uma obra), procurando inserir-se no tempo que retrata, numa formalidade a lembrar um cartaz modernista, matemático, premeditado, caricatural, amostra de um circo antigo ou de uma obra Cinemascope. Mostra-nos que ainda não vimos tudo.

E, realmente, resta-nos o último piso onde o sonho se intensifica, materializa (talvez a vida de Coelho, na superação das suas circunstâncias, também tenha sido um sonho) – estamos o mais próximos, do que é possível ao Palácio dos Marqueses de Tomar, das nuvens. Vemos Domingo, Segunda, Terça, Quarta, Sol, Sexta, Sábado de Mónica Coelho, pinturas translúcidas sob acetato, tentativas de compreender as noites mal dormidas do músico à espera de se deslocar para o Conservatório de Lisboa, numa luz colorida, matinal, trespassada pela janela onde imagens se aglomeram como elementos hipnagógicos – pautas, piano, números, linhas, galáxias. Vemos também uma série de figurações aguareladas de Pedro Proença, Sem Título, aqui entre o surreal e o vegetalista como traduções de imaginários, e tal como o Bouquet de Inês Wijnhorst tentando camuflar-se nas paredes, dialogando quer com os profusos tetos do espaço (ao estarem algo altas, as obras forçam-nos em segundo plano, a reparar neles) como fazendo-se mise-en-scène, alusão à cenografia do bailado da Princesa dos Sapatos de Ferro, anunciado no texto que as acompanha.

Chegados ao fim da exposição, nunca se ouviu uma obra de Coelho. As abelhas procuram a flor à espera de uma resposta. Ela encontra-se logo na primeira sala, à entrada, do lado direito – papoila vermelha, brilhantemente ilusória. Talvez nos diga que, apesar dessa imediatez, revelação exposta sorrateiramente logo aos primeiros instantes, a presença de Coelho nunca se apagou – talvez o silêncio, dialeticamente, tenha sido o seu espaço de entrada, condição essencial para a sua concretização. Afinal já não é ele que fala: ainda que a sua obra permaneça, renascendo noutro contexto, – talvez agora o ideal à sua compreensão – ele já não nos voltará a tocar um acorde. Observámos, portanto, uma agência entre gerações, o que ficou do que passou, querendo tornar-se ainda mais assente, intensificado pelo tempo, finalmente: o que era, agora torna-se.

What was, now becomes está em exposição na Brotéria até ao dia 3 de setembro.

Miguel Pinto (Lisboa, 2000) frequentou a licenciatura em História da Arte pela NOVA/FCSH, através da qual veio a realizar um estágio no Museu Nacional do Azulejo. Participou no projeto de investigação VESTE – Vestir a corte: traje, género e identidade(s), alojado pelo Centro de Humanidades da mesma instituição. Criou e gere o projeto a Parte da Arte, que pretende divulgar e investigar o panorama artístico em Portugal através de vídeo-ensaios explicativos.

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