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Ressonância: André Cepeda na Venha a nós a Boa Morte (Viseu)

Ressonância de André Cepeda[1] patente na Venha a nós a Boa Morte (VNBM)[2] é o resultado de uma residência artística em Viseu, com colaboração de Miguel Abras, a convite da galeria recentemente inaugurada no centro histórico da cidade. O espaço reabilitado pela Pausa Possível surgiu com o propósito de incentivar à criação, produção e apresentação de práticas artísticas contemporâneas, através de um programa de quatro exposições anuais, potenciando a descentralização da criação artística, com projetos realizados, pensados e apresentados no território.

As fotografias de Cepeda, juntamente com as palavas de Abras, num trabalho conjunto que reverbera e ecoa as várias pessoas e lugares que foram perscrutando ao longo da residência, demonstram mais do que rostos, gestos, texturas e ambiências. Propõem uma poética, na medida em que sentimos o silêncio, a mágoa, a solidão e a humanidade, pela plasticidade da escolha das imagens apresentadas e a sua disposição no espaço expositivo, como pelo texto experimental, segundo os testemunhos que foram sendo reunidos durante o processo. Segundo a folha de sala: “A ruína, o abismo, a vertigem, o corpo e o existencialismo, em ressonância com a sobrevivência são os temas que abordam. Esses assuntos confirmam-se na sombra do esquecimento que ao dialogarem, ressoam permanentemente em espaços silenciosos onde se questiona a importância da história”. Justamente, após uma breve incursão pelo centro histórico de Viseu, onde seguimos por ruas e ruelas algo vazias e silenciosas, com casas antigas, algum comércio tradicional e a emblemática Sé, quando entramos na VNBM a experiência prolonga-se e ressoa pelas seis fotografias de Cepeda. Todas com o mesmo formato, num equilíbrio que demonstra bem a sua cadência e relação, como se fosse uma pauta musical, onde se denota a espera, os silêncios e a duração de cada tomada. No entanto, sentimos algumas variações, pois juntamente com fotografias a preto e branco, vemos duas em tons alaranjados, talvez representações de algum material enferrujado, que enfatizam a marca do tempo. O que por sua vez acentua a imagem do rosto de um idoso, cujo olhar nos toca profundamente e nos leva para outros lugares, frente a frente a uma personagem de costas, a quem só vemos o cabelo claro, ponto de vista que imediatamente nos recorda algumas imagens clássicas do cinema, como o penteado de Madeleine Elster em Vertigo (1968) de Alfred Hitchcock, ou ainda o da mãe de Zerkalo (1975) de Andrei Tarkovsky. No centro da composição, um homem tem o rosto tapado pelo cabelo comprido, como se fosse O Pensador (1904) de Auguste Rodin, O desterrado (1872) de Soares dos Reis, ou até mesmo um músico rock, pelo blusão de couro, calças de ganga e botas, quase junto a uma imagem com tags que nos transporta para um imaginário e sonoridades punk: “na ruína das minhas decisões / identificas-te com a queda / o abismo / é preciso ter medo das alturas / o precipício suga / a vertigem puxa / há prazer nisto ou é apenas uma fuga / se continuar a cair como é que / afundo / cair caí / há fundo”, lemos no texto que acompanha a exposição.

Curiosamente, em Ressonância, também encontramos ecos provenientes da fotografia documental norte-americana da primeira metade do século XX, sobretudo de Walker Evans, pelo modo poético como fotografava o que via ao seu redor. Um dos seus projetos mais icónicos foi comissariado pela Farm Security Administration, em que lhe foi requisitado documentar a vida e a situação das comunidades rurais durante a Grande Depressão dos anos 1930, juntamente com Dorothea Lange, Arthur Rothstein, Russell Lee, entre outros. Contudo, destacamos Let Us Now Praise Famous Men (1941) em que Evans viajou pelo sul dos Estados Unidos da América com o escritor James Agee, a propósito de um artigo sobre proprietários rurais, que mais tarde resultou numa publicação sobre a vida daquelas comunidades, com palavras e imagens de um forte lirismo, tanto de teor documental e político, como subjetivo e autobiográfico, tendo se tornado numa das obras de referência da fotografia e cinema documentais.

Em tom de conclusão, deixamos uma passagem de Húmus (1917) de Raúl Brandão, que muito caracteriza a experiência de Ressonância: “O homem por dentro é desconforme. É ele e todos os mortos. É uma sombra desmedida; encerra em si a vastidão do Universo. E com isto teve de atender a máscara. Para poder viver teve de se transformar e de esquecer a figura real por a figura de todos os dias. Agora todos somos fantasmas – todos somos afinal só fantasmas, e o que construímos já não cabe entre as quatro paredes da matéria”. [3]

A exposição está patente até 10 de setembro na galeria Venha a nós a Boa Morte.

 

 

[1] http://www.andrecepeda.com

[2] https://www.facebook.com/venhaanosaboamorte

[3]Brandão, R. (2016). Húmus. Lisboa: Bertrand Editora, Lda. p.72.

Ana Martins (Porto, 1990) é investigadora doutoranda do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2022.12105.BD). Frequenta o Doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, tendo concluído o Mestrado em Estudos de Arte – Estudos Museológicos e Curadoriais pela mesma instituição. Licenciada em Cinema pela ESTC do IPL e em Gestão do Património pela ESE do IPP. Foi investigadora no Projeto CHIC – Cooperative Holistic view on Internet Content apoiando na integração de filmes de artista no Plano Nacional de Cinema e na criação de conteúdos para o Catálogo Online de Filmes e Vídeos de Artistas Portugueses da FBAUP. Atualmente, desenvolve o seu projeto de investigação: Arte Cinemática: Instalação e Imagens em Movimento em Portugal (1990-2010), procedendo ao trabalho iniciado em O Cinema Exposto – Entre a Galeria e o Museu: Exposições de Realizadores Portugueses (2001-2020), propondo contribuir para o estudo da instalação com imagens em movimento em Portugal, perspetivando a transferência e incorporação específica de elementos estruturais do cinema nas artes visuais.

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