Down To Earth* Coletividade, Envolvimento e Regeneração
A atual e acentuada discrepância social, devastação ecológica e automatismo mundial movido a capital – abre campo para um desdobramento de (novos) paradigmas estéticos, também promovidos pelos avanços da ciência, tecnologia e relações sociais. Estamos continuamente numa fronteira em que a auto-consistência das práticas artísticas deve ser (rea)firmada em relação aos elementos locais específicos onde se constituem, e globais sem se alhear das iminentes questões de cada tempo. A arte deve ser local de experimentação para o envolvimento entre pessoas e destas para com o lugar; residindo nela a capacidade de voltar os seus recursos, mais do que num sentido de produção, de regeneração. Isto apenas advirá da combinação da criatividade de várias disciplinas, cujas visões e ideais são suficientemente tangíveis para nos salvaguardar de uma alienação destrutiva e, assim, nos conduzir além, em permanente transformação, par a par com o mundo, rumo à nossa inevitável reinvenção e da nossa relação com o lugar.
Felizmente muitos destes pensamentos já se efetivam. Em Portugal, Ponto d’Orvalho (PdO) é um festival híbrido que, instalado em Montemor-o-Novo desde 2020, constitui-se como um espaço aberto ao debate e à ação ambiental, através de uma intervenção artística, social e ecológica. A Joana Kramer Horta, a Leonor Carrilho e o Sérgio Hydalgo, responsáveis pela sua programação, partilharam com a Umbigo como será a terceira edição, a realizar-se entre os dias 16 e 18 de setembro.
Mafalda Ruão – A intenção de abordar o ambiente e trazê-lo à discussão começa pelo nome do festival. Porquê Ponto d’Orvalho?
Ponto d’Orvalho, Joana Kramer Horta – O nome surge em 2020 durante a minha estadia no Freixo do Meio, um projeto pioneiro no panorama nacional, focado na produção alimentar num modelo e desenho agroflorestal regenerativo que reconhece o papel fundamental das árvores no ecossistema. Durante esta experiência, aprendi a entrar nos ritmos da cooperativa, que são também os da natureza. Acordava muitas vezes de madrugada e uma das minhas memórias mais bonitas era observar o orvalho a evaporar pela manhã. Daqui surgiu a curiosidade de aprofundar a pesquisa sobre o ponto de orvalho, fenómeno natural e científico que acontece diariamente, de transformação e autorregeneração, no qual o vapor de água do ar se converte em estado líquido.
O PdO nasce de uma grande vontade de materializar estas experiências e ampliar a discussão e a rede de colaboração entre outros agentes que privilegiam a mudança. Surge assim o convite à Leonor Carrilho e ao Sérgio Hydalgo para participarem ativamente no projeto e com quem partilho a programação, com a premissa de ligar a ecologia e a arte numa abordagem transdisciplinar e colaborativa. Sem cair na tentação de romantizar a natureza, o festival deste ano visa criar novos espaços sustentáveis através de práticas artísticas e intercâmbio mútuo de conhecimento, numa contínua reflexão e celebração da transformação coletiva.
MR – Assumindo-se como um espaço regenerativo, de criação e renovação, como pode o festival – no contexto português – alargar consciências, inspirando comportamentos e conduzindo a mudanças efetivas?
PdO, Joana Kramer Horta – Hoje assistimos a sucessivas mutações ecológicas de impacto planetário. No PdO queremos abordar a importância de aprender novas formas de habitar a Terra através de um programa que se constitui como investigação transdisciplinar com o objetivo de mapear, tematizar, compreender, questionar e contextualizar questões ecológicas, partilhadas com o público de forma a alargar a rede de ação da cultura e mostrar que as práticas artísticas permitem um diálogo entre discursos e investigações das ciências naturais e sociais.
Uma das propostas é a colaboração entre o biólogo António Mira, especialista em ecologia da paisagem e ecologia comunitária e a artista visual Gabriela Albergaria, que toma a relação do ser humano e a natureza como ponto de partida para as suas obras. Seremos conduzidos num exercício coletivo de reconhecimento da paisagem para refletir sobre os impactos induzidos pelo ser humano na biodiversidade e nos ecossistemas.
Como complemento ao programa, iremos organizar em novembro de 2022, com o apoio da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo, uma ação de plantação com crianças e jovens do Município para incentivar à consciencialização ecológica e potenciar bases de aprendizagem sobre técnicas de agricultura sintrópica em sistema agroflorestal.
Como Bruno Latour refere no livro ‘Down To Earth – Politics in the New Climate Regime’ está na altura de descer à terra, de aterrar num lugar e resistir a esta perda de orientação comum. Reaprender como nos posicionar nesta nova paisagem que nos obriga a redefinir e refletir sobre como existimos no planeta.
MR – Numa altura em que Portugal tem cada vez mais projeção internacional e a costa portuguesa se encontra demográfica e culturalmente sobrelotada, quais as principais razões para se apostar na região do Alentejo?
PdO, Leonor Carrilho – Apostar na região de Montemor-o-Novo veio através da ligação da Joana Horta à cidade. Esse foi o ponto de partida para algo que os três queríamos fazer – descentralizar. Trabalhando em cultura há vários anos, vemos a concentração da oferta cultural nos grandes centros urbanos e o deserto existente no interior do país. Felizmente, nos últimos anos têm surgido projetos que lentamente se afirmam no panorama nacional e que nos estimularam a fazer algo partindo dessa premissa da descentralização. Uma das coisas maravilhosas que encontramos quando saímos da “bolha urbana” é a oferta cultural rica que o nosso país tem, dentro das várias expressões culturais e populares e as inúmeras possibilidades as explorar, de as pôr em diálogo e as questionar – que é também uma forma de nos questionarmos a nós próprios.
MR – Qual é o papel de Montemor-o-Novo na programação do festival? Está o projeto relacionado maioritariamente com o contexto local ou é a cidade um exemplo ou ponto de partida para levantar questões universais?
PdO, Sérgio Hydalgo – Além da relação emocional da Joana com Montemor-o-Novo, a cidade tem uma dinâmica única no contexto nacional e é para nós fundamental estabelecer relações com os seus agentes de forma frutífera e duradoura. Para esta edição, voltamos a apostar na produção e economia local em colaboração com a Cooperativa Minga que irá fornecer todos os produtos nutritivos durante os dias do festival. Outros parceiros importantes são O Espaço do Tempo e a Câmara Municipal de Montemor-o-Novo que nos ajudarão, respetivamente, em termos técnicos e logísticos. Para esta edição procurámos desenhar um programa equilibrado com artistas e oradores locais, nacionais e internacionais. Haverá ainda um bilhete de valor especial para os habitantes do concelho. Tanto importa agir localmente, como globalmente – do particular para o universal, sem hierarquizar!
MR – A caminhar para a terceira edição, quais as novidades deste ano?
PdO, Sérgio Hydalgo – Este ano deixamos o Freixo do Meio e passamos a realizar grande parte do festival na Herdade do Barrocal de Baixo. Esta mudança permite-nos oferecer mais opções de estadia ao público, desde o campismo a pequenos alojamentos. Outra das novidades é termos o chef Diogo Noronha como responsável pelas refeições, cujos menus de abordagem portuguesa contemporânea, atlântica e mediterrânea, respeitam a natureza, a sazonalidade e quem trabalha na terra e no mar. Uma cozinha que apela a uma cultura alimentar sustentável e resiliente, privilegiando ingredientes provenientes dos princípios da agricultura regenerativa. Como referido, temos ainda bilhetes com desconto para a população do concelho e um número limitado de bilhetes com desconto para pessoas em situação precária ou de desemprego.
MR – São muitas as entidades, pessoas e saberes de diferentes áreas que se unem no Ponto d’Orvalho com um objetivo comum. Nesse sentido, o festival destina-se a profissionais, especialistas das várias matérias exploradas e ativistas, ou pode o público em geral desenvolver um papel ativo?
PdO, Leonor Carrilho – Estamos a fazer um festival para o público e não para profissionais de cultura ou experts. Os objetivos podem ser diversos, dentro do mesmo “lema” que é pensar num futuro coletivo mais sustentável e olhar para a Natureza como principal fonte, foco e nossa aliada na construção desse futuro. O exercício de escutar uma leitura debaixo de um céu estrelado, envolvidos por todo aquele ecossistema, naturalmente que é uma experiência diferente de escutar na rádio, numa galeria ou sala de espetáculos.
Quando construímos a programação, houve ainda a preocupação de trazer pessoas de vários campos artísticos e científicos e possibilitar um encontro entre eles, que esperamos inesperado e único. Por exemplo, a artista Inês Neto dos Santos fará uma food performance na Quinta das Abelhas (um dos grandes projetos pioneiros de agricultura sintrópica em Portugal), em que a própria performance é a partilha entre as pessoas, através de gestos coletivos que nos ligam aos outros, à artista e ao objeto artístico de uma forma mais integrada e especial. Tudo ao som do Coro Ecos do Monte, grupo feminino de cante alentejano de Montemor-o-Novo. São alguns exemplos que mostram que o PdO é um encontro para envolver as pessoas, artistas e público, num espaço afetivo capaz de nos fazer produzir reflexões e empatias, que esperamos que resultem em ferramentas para existirmos no mundo de forma mais coletiva.
*Em alusão à referência de Joana Kramer Horta, à obra de Bruno Latour ‘Down To Earth – Politics in the New Climate Regime’ (2017).