Chegar à boca da Noite
Instituído em 2020 para receber parte da Coleção de Arte Contemporânea do Estado (CACE), o Centro de Arte Contemporânea de Coimbra (CACC) apresenta-nos a sua quarta exposição Chegar à boca da Noite[1] que inicia um novo ciclo proposto pelo curador José Maçãs de Carvalho, com o intuito de criar relações com outras coleções, nomeadamente coleções privadas, quer da cidade de Coimbra como da região estabelecendo uma relação mais íntima com os munícipes.
Chegar à boca da Noite, reúne um conjunto de obras de dezanove artistas provenientes das Coleções do Estado e do Município de Coimbra, da Coleção de Fotografia Contemporânea do Novo Banco e da Coleção ER, quatro coleções em serviço de um registo curatorial. Pensada em convergência com a temática meia-noite da Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra: Anozero, a exposição desenvolve-se segundo a ideia de crepúsculo e solidão, num intervalo de tempo e de espaço, o mesmo evocado em verso por Ruy Belo em Aquele Grande Rio Eufrates: E ouve-se o silêncio descer pelas vertentes da tarde / chegar à boca da noite e responder, e que o conceito curatorial e narrativo da exposição toma de empréstimo. O conjunto de obras encontradas transporta imagens que nos chegam marcadas por uma luz crepuscular, instalada nesse intervalo, e que constroem lugares intersticiais. Estes lugares podem transportar sensações de transgressão, expectativa, espera ou desassossego porque, em boa verdade, a luz que deles emana é silenciosa e ténue.[2] A ideia de crepúsculo, sensação de sobressalto e desassossego é-nos enunciada nas primeiras obras de Chegar à boca da Noite a partir de paisagens naturalistas e combinações lumínicas, como em Silvae, 2004 de João Queiroz (1957), através da qual entramos num jardim, num bosque, numa floresta mediante um encontro inesperado de descoberta e perceção da natureza numa pintura que subverte a relação entre o pormenor e o todo, evocado pelo detalhe e incidência de luz. Numa combinação entre gestos largos e mais pequenos, leves e pesados, João Queiroz mergulha-nos nas folhagens de uma paisagem, por zonas iluminadas e de luz negrume. A luz como penumbra que descobrimos na paisagem construída de Filipe Romão (1981), cuja aura melancólica acentua a ideia de silêncio, solidão e memória. Desenho a carvão sobre papel, Nº. série, 01, Dos lugares onde nunca estive, 2018 atrai-nos pela profundidade e tonalidade densa do negro trabalhado por camadas, pelos jogos de sombra e luz e ausência de figura humana – à semelhança de João Queiroz – numa procura do artista pela paisagem primitiva. Profundidade e solidão que habitam A chuva cai ao contrário, 2009, desenho-pintura de João Jacinto (1966), representação de um caminho simultaneamente sombrio e iluminado. Observamos as cores escuras e húmidas da chuva, as manchas negras que povoam o caminho que encimado por um céu mais claro, cria uma atmosfera misteriosa que tanto nos desassossega como tranquiliza. Em confronto com a representação da ideia de paisagem presente nas obras já citadas, destacamos a imagem em exibição de Doug Aitken (1968), cuja representação da natureza/paisagem assume a urbanidade e avanços tecnológicos – natureza artificial- com a introdução da luz elétrica na panorâmica noturna. À expressividade e grandiosidade da fotografia, acresce-se a beleza do fundo negro que dominado por pequenos pontos dourados prolonga a sensação de horizonte da imagem que parece não ter limites, e que num interessante contraste dialoga com a obra pictórica de Hugo Canoilas (1977), Diversas Africanas #2, 2007 que na parede em frente nos seduz pela riqueza e variedade cromática das pinceladas sobrepostas e de gestos rápidos que tanto imprimem uma nota de cor como sugerem uma certa intranquilidade.
A atmosfera crepuscular que se anuncia e nos acompanha no momento inicial do nosso percurso em Chegar à boca da Noite acentua-se assim como a sensação de angústia e de tragédia que nos são transmitidas em obras que, no segundo piso da exposição, convocam a noite e a morte. A este propósito destaquemos Untitled (Black Mirror), 2005, de Aino Kannisto (1973), obra em que a própria fotógrafa – que observa o seu reflexo no espelho – é a protagonista, revelando-nos uma imagem bastante fúnebre de si mesma[3]. Há uma atmosfera melancólica e inquietante na imagem, capturada no instante fotográfico em que o espaço e o tempo param, confrontando-se o espectador com um momento de revelação íntima e de contemplação interior. Ao desassossego que a cena evoca, acresce-se a atenção da artista aos detalhes da composição: a queda de luz; a cor negra; a disposição do cenário; o vestuário da mulher; o seu olhar; gestos e posicionamento, reforçam o ambiente de suspense da imagem. No mesmo espaço, outra figura feminina desperta a nossa atenção: a da mulher cujo corpo e vestido flutuam dentro de água, em Immerse de Pedro Pascoinho (1972). O olhar inerte que parece fixar-nos, a boca entreaberta e a cara envolta até ao queixo no azul profundo, quase negro, da água que a cerca, acentuam a intensidade e o drama da situação emocional representada. A luz crepuscular que incide sobre o seu corpo envolto no obscurantismo reforçam a sensação de melancolia e abandono da cena retratada, que suspensa no tempo é uma referência do artista ao mito de Ofélia[4]. A presença da noite, do abandono e da solidão que reencontramos na presença espectral de Duchamp, 2015, de Carlos Correia (1975-2018) fantasma pensativo do pintor que joga xadrez consigo próprio e sobre o qual a luz incide revelando-o como aparição. Ladeando o jogador a convocação da morte de Paulo Brighenti (1968) cujas caveiras, alinhadas em prateleiras, relembram-nos a inevitabilidade da mesma: crânios como lembranças de outros tempos, de outras civilizações, como o monumento megalítico de Pires Vieira (1950), Alinhamentos, 1988, obra pictórica minimal através da qual o artista evoca morte e memória, despertando-nos a configuração geométrica dos alinhamentos tumulares sobre um campo verde, a depuração e simplicidade das formas, sensações de repouso, transcendência e espiritualidade.
No último piso da exposição somos envolvidos pela ambiência crepuscular das duas fotografias da série Dream House, 2002, de Gregory Crewdson (1962). Dispostas lado a lado, observamos quais voyeurs, o lado íntimo e privado da vida doméstica de um homem e de uma mulher. Cada um em seu quarto, sentados na beira das respetivas camas, atraem-nos e desassossegam-nos pelo lado sombrio, estado de sofrimento e solidão que evocam – se bem que acompanhados – que a iluminação e qualidade cinematográfica da encenação ajudam a reforçar. A penumbra que do interior dos quartos estende-se ao ar livre, ao jardim que a fotógrafa Sarah Jones (1959) nos oferece em The Park (II), 2002. Rigorosamente enquadrada, ricamente colorida e tonalmente sensível, observamos as folhas outonais caídas no chão, o verde escuro da vegetação que serve de pano de fundo à imagem e a árvore que com os seus longos troncos fornecem à composição um ambiente sombrio. Como uma cena pictórica suspensa no tempo, Sarah Jones funde na beleza visual da inquietante paisagem, a figura solitária da protagonista: a mulher que ao centro da composição, deitada no tronco da árvore como que levitando, parece imersa no seu mundo privado e num estado de ambivalência. Ideia de suspensão que reencontramos nas obras em exibição dos artistas portugueses Rui Chafes (1956) e Ana Rito (1979). Como sombra que flutua no espaço, de um negro intenso, deixamo-nos seduzir por PPP,2005 de Ana Rito, escultura cuja leveza e intensidade nos impelem ao encontro da figura eclesiástica que se nos impõe pela solenidade da mitra e das vestes cujos pregueados conferem dinamismo e movimento como se viesse ao nosso encontro. A serenidade no seu rosto que fixa Áspero, Nobre Suicidário III, 1996, escultura de Rui Chafes (1956), um corpo dentro de um corpo que constrange e envolve, imprime-nos um desconforto aprazível e ideia de ferida que de certo modo nos acompanham ao longo de Chegar à boca da Noite, exposição de silêncios que constroem narrativas poderosas.
Chegar à boca da Noite, está patente no Centro de Arte Contemporânea de Coimbra (CACC) até 28 de agosto.
[1] Inaugurada a 20 de abril de 2022, Chegar à boca da Noite estará patente no CACC até ao dia 28 agosto.
[2] CARVALHO, José Maçãs de – Folha de Sala de Chegar à boca da Noite.
[3] Citação do curador José Maças de Carvalho durante a reportagem à ESECTV a propósito da exposição.
[4] Idem.