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Em pleno século XXI pode ver-se, no Museu Rainha Dona Leonor, em Beja, uma réplica da grade da janela de onde a religiosa Mariana Alcoforado terá sentido a distância e o fervor da paixão que, consumindo-a a ela por não ser consumada, dedicava a um cavaleiro francês. Tudo é incerto: se aquela monja bejense, de um convento franciscano, foi, de facto, a redatora de cinco cartas de amor, traduzidas para francês e publicadas em França em 1669; se o dito oficial – o Marquês de Chamilly, que terá lutado ao lado dos militares lusos contra o exército espanhol, entre 1663 e 1668 – alguma vez conheceu a religiosa e, tendo-a conhecido, desbaratou o seu amor ao regressar a França, suscitando as frases que lhe teriam sido remetidas; se as cartas, em última análise, seriam verídicas, ou fruto de um exercício de estilo muito comum na segunda metade do século XVII, pois surgiram como suposta tradução de epístolas, cujos originais se desconhecem… se, se…
Incerto, tudo, apesar de verosímil. Mas as palavras existem, inscrevem-se e, inscritas, vincam o mundo. Inventadas para lazer dos leitores ou surgidas da urgência da paixão, a sua fonte verbal é feminina: é uma mulher que as enuncia, e esse facto sobrevive, mesmo que a autoria do texto possa ser de um homem. A chave é a invenção – a construção de uma história, de uma intriga que apaixona quem a lê, quem a ouve. Tantas vezes se celebra a invenção: em Verona, um dos lugares mais visitados pelos turistas é a “varanda de Julieta”, estrutura arquitetónica que aponta para a obra de um dramaturgo britânico da época do Renascimento (sobre cuja biografia, além do mais, resistem misteriosas lacunas), que jamais pisou solo veronês. Há tantos mais exemplos – e são os materiais, objetos, símbolos, aquilo que os desencadeia, o que os faz entrar na parada narrativa.
Ao fundo de um corredor longo, no primeiro piso do Museu de Beja, a cobrir uma janela que dá para Sul, cruzam-se grossas barras de ferro. Encenam, perante quem visita, a cela de Mariana; projetam o ideário da paixão no modo como este se lança sobre a abertura da janela; convidam a imaginar, a atravessar tempos, personalidades, histórias. É esse o poder dos símbolos, aquilo em que os objetos se tornam quando são deslocados da sua existência trivial por uma atenção que os extrai ao destino do banal. Muitas vezes, tantas vezes, essa atenção assume a forma do amor: para honrar esse modo de ver o que está no mundo, alguém inventa em cartas palavras apaixonadas; para recordar o amoroso que existe na vida, a imaginação de visita infunde nos traços férreos de uma grade as figuras de dois amantes que se distanciam: inventam-se outros, outros de nós, outros desconhecidos, outros iguais.
É nesta dinâmica transformacional através do amor que opera o poder da arte de Maria José Oliveira. (Num tempo sem tempo) a invenção dum outro / (Dans un temps sans temps) ‘l’invention d’un autre é o título da exposição com que a artista, com a colaboração de Carlos No, respondeu ao repto da Associação Luso-Francesa de Arte: “refletir sobre a questão de saber se as emoções, as sensações e os desejos … serão encontros não necessariamente ‘felizes para sempre?’”[1]. O espaço da sala do Convento da Conceição (o Museu Rainha Dona Leonor), em Beja, foi um dos dois lugares escolhidos para a exposição, duas instalações – comunicantes entre si, sendo o outro a Igreja Colegial de Bueil-en-Touraine, em França. Ambas as localidades haviam servido de cenários reais para a reconstituição da narrativa amorosa no filme Les Lettres Portugaises (Bruno François-Boucher, 2013), e essa atmosfera foi aproveitada para a instalação na capital do Baixo Alentejo.
A janela de Mértola fica ao fundo de um corredor-sala no primeiro piso do Museu bejense: como se adentrasse uma artéria sanguínea, o visitante vislumbra do cimo das escadas as grades da janela, atravessadas por uma espécie de tule, tecido suspenso que, à transparência, confere uma dimensão onírica ao lugar. Maria José Oliveira criou um cubo físico, mas etéreo, obstáculo e potência da presença da luz para onde abre a janela (“as a glow brings out a haze”, escreve Joseph Conrad em Heart of Darkness). À medida que se aproxima do fundo da sala, o visitante ouve mais nítido o bater de um coração, numa peça sonora que integra a instalação. A artista chamou Coração ao cubo que é o centro da exposição, músculo habitado e latente onde culmina o caminho dos objetos. (Na primeira das cartas da religiosa portuguesa, diz ela, sobre o seu coração, que ele “bateu de tal forma que parecia querer fugir-me para te ir procurar”[2] – é essa fuga que a janela aponta ao audível descompasso do coração.)
Esta sala-corredor-caminho-do-coração acolhe várias peças de dimensões, tipologia e disposição diversas, exibidas em dez vitrinas, e oito desenhos comunicantes. São peças que associam um traço essencialmente trivial, do quotidiano, e a que o enquadramento expositivo anula a trivialidade, conferindo-lhe a aura de objeto artístico, ou sublinhando a excecionalidade que desde logo transportam. Exemplo da primeira operação é o casaco comprido, pendurado num cabide, no nicho à direita de quem entra: Maria José Oliveira contou como o confecionou, esperando vesti-lo na inauguração da exposição, mas optando por integrá-lo quando se apercebeu da informalidade da ocasião. É uma justificação válida, mas a decisão de o integrar na mostra provoca uma pergunta e o reatar de elos de comunicação entre a artista e a religiosa: a entrega de Mariana às palavras da paixão, “contra toda a espécie de conveniências”, é como um dependurar do hábito, um esvaziá-lo da pessoa por se lhe ter perdido o sentido. O mesmo labor ritual e dedicado com que a artista costurou aquela peça de vestuário corresponde à dedicação espiritual de uma religiosa; abdicar das vestes é atravessar o portal de uma existência, da clausura do convento para a paixão (que é, para Mariana, outra forma de fechamento), da menor relevância artística de um casaco comprido para o destaque de uma exposição (que, aqui, implica o encerramento num nicho da parede).
Exemplo da segunda operação que referi – a disposição na mostra sublinhar a prévia excecionalidade de um objeto – é uma das peças da segunda vitrine que o visitante encontra à sua esquerda: uma placa de vidro com imagem, fragmento vítreo que alguém trouxe de África para oferecer à artista (tantas são as peças, nas suas exposições, que chegaram até ela por mãos amigas – “apodero-me o mais possível do não comprável”, explica Maria José Oliveira), um pedaço de vidro que esteve exposto ao sol durante décadas, talvez, e que a luz solar impregnou de imagens. Uma joia rara, a amizade assim fixada, o único agora transposto e exibido.
A amizade – silente declinação pacífica do verbo amar – dinamiza a transformação em arte: o “outro” que se inventa pode ser outro além de quem ama, alguém, um terceiro, que o amor entre “eu” e “outro” faz emergir, ou mesmo “um outro” amor, um amor diferente do que se conhece e vive, na arte e na literatura, através de convenções. A artista interroga-se, numa das folhas de sala, se será possível, no século XXI, “un nouveau regard sur cettes lettres d’amour”. No começo dos anos 70, as três Marias interrogavam-se, nas Novas Cartas Portuguesas[3], sobre qual teria sido “a mudança na vida das mulheres ao longo de séculos”. Escrevem os curadores que a conceção da exposição se fez como “um manifesto de liberdade no feminino, das mulheres que, diariamente, por todo o mundo, se veem privadas da sua liberdade de pensamento, do direito ao trabalho digno, privadas de proteção social, obrigadas, ainda, a limitações graves na sua liberdade de deslocação”, “vítimas – tantas vezes – de uma cobarde violência doméstica, tanto física como psicológica”. A liberdade pode exercer-se (e exercitar-se, tonificar os seus mais internos músculos) através de um gesto que acolhe a parede do museu como peça em exposição: ao longo do corredor, e frente a duas das arestas do cubo transparente que esconde o coração, há dez momentos de inscrição – a artista adensou a materialidade da simbólica clausura, desenhando a grafite contornos sobre as paredes da sala, descrevendo-os como “desenhos comunicantes”: igualáveis, afinal, a páginas de um livro onde as palavras de Mariana, como as de todas as mulheres impedidas, silenciadas no seu amor pelo abandono do ser amado (um “ghosting” seiscentista) ficassem, nada mais que apenas subtilmente, registadas.
Transformar, inventar, interrogar, são processos livres e vitais – vitais porque, ao mesmo tempo, contêm e exigem vida, a vida que o amor assegura; livres porque é no exercício da liberdade de transformar, de inventar outros, de interrogar o mundo, que se luta pela liberdade. Na liberdade de escolher desenhar sobre a parede da sala, de aproveitar as marcas que essas paredes exibem das presenças anteriores. Na afirmação do amor – o amor também aos óculos que pertenceram à mãe, a um par de luvas herança de família – que se pugna pelo amor. No sussurro de uma voz – a voz murmurada de Maria José Oliveira, se o acaso permitir ouvi-la – que se percebe o pulsar do grito.
A exposição (Num tempo sem tempo) a invenção dum outro / (Dans un temps sans temps) ‘l’invention d’un autre, de Maria José Oliveira, com curadoria de Fernando Ribeiro e Jean-Michel Albert, produzida pela Associação Luso-Francesa de Arte, numa parceria da Direção Regional de Cultura do Alentejo com o Museu Rainha Dona Leonor e o apoio do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, pode ser visitada até 18 de setembro de 2022.
[1] Folha de sala, subscrita pelos curadores, Fernando Ribeiro e Jean-Michel Albert.
[2] Cartas Portuguesas, tradução de Eugénio de Andrade com ilustração de pinturas de Ilda David. Lisboa: Assírio e Alvim, 1998, p. 17.
[3] Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972 (edição anotada, sob a organização de Ana Luísa Amaral. Lisboa: Edições Dom Quixote).