Minúcia e monumento
Da primeira vez que visitei a In the Pink, no centro histórico de Loulé, o seu diretor, Pedro Vasconi, mostrou-me dois bonitos recantos: a claraboia agora renovada a deixar entrar a luz por cima da escada em caracol e, no piso de topo, passando a pequena área de serviço, uma janelinha que abre para fora do edifício e revela a parte de trás do campanário da também pequena – mas preciosa – Ermida de Nossa Senhora da Conceição. É curioso o que mostram as camadas históricas dos centros urbanos: na rua, descendo o passeio frente à entrada dessa Ermida, a ela adjacente e marcando a curva do passeio até à Avenida de República, o templo seiscentista ampara-se no volume moderno que hoje alberga a galeria, mas cuja edificação data de há mais de um século. A assimetria dos dois é marcante, sobretudo na dimensão: o edifício de esquina tem três andares, encimados por uma balaustrada que deixa entrever um terraço, ou o espaço para um telhado a ocultas dos olhares dos transeuntes; a Ermida, minúscula e discreta, fica na rua lateral à via principal. Mas uma característica os aproxima: são ambos lugares de beleza e, em sentidos diferentes, de culto.
Depois de décadas em que o rés-do-chão foi conhecido como Casa Iria, a loja de pronto-a-vestir de João Iria, o edifício constitui hoje, mais do que apenas acolhe, uma galeria de arte fotográfica, a In the Pink. Anja e Phil Burks, ela alemã e ele britânico, terão decidido investir num espaço central de Loulé, núcleo urbano de uma das mais turísticas regiões portuguesas – além daquela onde talvez se concentrem, sazonalmente, muitos potenciais compradores de arte.
O interesse da galeria começa por ser exatamente aquilo que lhe dá forma, o edifício. A recuperação arquitetónica é reconhecida pelos habitantes da cidade, mas facilmente reconhecível por quem a visite pela primeira vez, dado o cuidado que se percebe na manutenção da traça original da fachada, tanto quanto se dedicou ao projeto decorativo dos interiores, da responsabilidade do gabinete lisboeta SA&V – Sá Aranha & Vasconcelos. Com a valorização do volume no conjunto dos três andares (os cimeiros passavam bem mais despercebidos na altura em que servia não mais do que a loja de camisaria e jeans), o assertivo do rosa agora mais vivo a contrastar com as linhas retas e elegantes das cantarias, o interior limpo e amplo em tons de branco e preto e mobiliário minimal, com um pé direito bem elevado e a escadaria, imponente mas sem ornamentos, a marcar uma posição estética para lá da função, o lugar merece, por si só, uma visita. As condições funcionais foram preparadas para o melhor aproveitamento possível, e parece ter sido esse o objetivo dos galeristas ao inaugurar a galeria com a exposição de obras de três nomes grandes da fotografia de moda: Albert Watson, Bastiaan Woudt e Kristian Schuller.
Talvez sejam as fotografias de Woudt, o mais jovem dos três fotógrafos (n. 1987), aquelas que melhor se enquadram no espaço desta nova galeria: com o preto e branco a refulgir nas suas dimensões alargadas, as paredes acolhem de maneira particularmente generosa as figuras das modelos em silhuetas que não são senão resultado do trompe l’oeil a que o jogo da sombra e da luz incentiva. Não terá sido casual a escolha das suas fotografias para o andar que o visitante primeiro conhece: o enquadramento clássico, o minimalismo dos tons e das linhas, assim como a limpidez e a centralidade do tema (exclusivamente modelos femininas) dentro da moldura condizem com a proposta da casa.
No andar de cima, encontram-se as fotografias de Kristian Schuller (n. 1970), cuja produção se poderia considerar mais barroca: cada uma das imagens deste fotógrafo nascido na Roménia, mas com trabalho feito sobretudo a partir da Alemanha, articula elementos variados, planos abertos (muitos deles feitos em exterior ou em estúdio a representar áreas amplas), um complexo e rico jogo de cores, formas e narrativas, assim como a multiplicidade de projetos de moda a que estiveram associadas. A dimensão das molduras é também mais variada aqui do que no caso dos outros dois artistas que se exibem na primeira exposição da In the Pink.
As imagens de Albert Watson (n. 1942), um dos mais afamados mestres da fotografia de moda do último quartel do século XX, ocupam todo o piso intermédio – como que a consolidar ou a servir de eixo ao conjunto da exposição. A amplitude do que se mostra da sua obra é, compreensivelmente, maior do que a dedicada a qualquer um dos outros dois fotógrafos, já que Watson tem visto fotografias suas em quase meia centena de capas da Rolling Stonee em mais de cem da revista Vogue. Destacam-se, entre as belíssimas imagens trazidas à nova galeria louletana, um retrato de Sade Adu de 1992, imagem que integra a coleção da National Portrait Gallery de Londres; e, num recanto subitamente colorido, ladeado por duas das janelas altas da sala, três impressões de 1977, que Watson fez no Algarve com a modelo Juli Foster, uma delas sobre o alçado retilíneo e encimado pela cúpula da Igreja de Nossa Senhora da Graça, na Fortaleza de Sagres.
Pedro Vasconi refere-se à escolha destas três obras (opções seguras), mostradas para dar a conhecer a galeria e sublinha o modo como se pretende que ali se preste culto à beleza fotográfica, devolvendo a vida ao edifício urbano, dialogando, através de novas perspetivas, com o espaço da cidade – as janelas dos andares de cima permitem vistas inusitadas, e fazem emparelhar a moldura das fotografias com o dinamismo da paisagem do lado de fora – e, sobretudo, procurando afirmar a In the Pink num circuito de arte da fotografia que passa pelo resto da Europa, mas também pelos grandes núcleos artísticos do Ocidente. Estar “in the pink” significa estar do lado feliz da vida: aqui, equivale a estar num lugar que já foi moribundo e agora se vangloria no encantamento da limpidez e da beleza. Reencontrar a respiração da rua e a calma isolada de um espaço de arte.
A In the Pink fica nos nºs 69-75 da Praça da República, em Loulé. A atual exposição está patente ao público até dia 10 de setembro.