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Mare Ossos Tellus, no Museu Nacional do Azulejo

A mais recente exposição de Teresa Segurado Pavão no Museu Nacional do Azulejo, Mare Ossos Tellus, impõe-se, inusitadamente, como um roubo: ao centro do Coro Alto da igreja de Madre Deus, onde deveriam estar relicários, apenas vemos um, o de São Lourenço, de mão levantada, introduzindo-nos à exposição. Numa prateleira inferior, está a primeira obra, Sangue, espalhando-se as restantes em fila ao longo da sala, dispostas em vitrines como caixas-forte, testemunho um deslocamento ou um assalto implícito: a preciosidade dos relicários foi substituída por peças contemporâneas de cerâmica branca, que morbidamente, usam ossos (recolhidos no campo ou praia pela artista), não enquanto instrumento de devoção, mas de funcionalidade. Até que ponto são realmente funcionais? A questão leva-nos à coleção do Museu onde objetos cerâmicos, outrora usados, ganham nova vida, agora, como exemplos revalorizados, posando para os visitantes. No caso destas peças, provavelmente, nunca se poderiam ter usado, fazê-lo traria consigo algo de sádico, mesmo na aparente pureza que conservam – são objetos marginais, questionadores, memória de mortalidade na pureza do quotidiano.

Dividem-se em 3 secções, parcialmente já anunciadas no título: uma série de peças Mar, outra série Terra, e a primeira, e única obra, Sangue. O que difere o Mar da Terra é a cavidade no fundo das peças, como uma vertigem, despenhamento, um sublime amparado pelas prateleiras de vidro – mesmo quando não o vemos, os outros exemplos, fechados com uma tampa, ajudam-nos a lê-lo. Em Terranão existe buraco, vemos sempre a planura, os pés assentes no chão. Os ossos entram como aparato com toques de ouro e prata, mas fazem-se úteis: são pegas de chávenas, aros de tigelas como cestas, bases, outras vezes só decoração. Em Terra 12, o osso penetra a superfície de um prato, fazendo-se um molde à sua medida; não lhe verificamos nenhuma funcionalidade, apenas uma delicada, preciosa beleza, ainda que reentrada num corpo, agora estranho, cerâmico.

Em Sangue, a cavidade da peça na base é preenchida numa substância vermelha, fixa, imortalizada, sangue tornado coral. A luz penetra-a, incidindo-a por baixo como uma quase lucerna. As peças de um branco quase opaco, inseridas nos minimalismos da contemporaneidade, revelam sempre, simultaneamente, algo de antigo que as antecede – sentido já implícito no título da mostra. Vamos percebendo, ao juntar as partes do todo, que se compõem, recorrentemente, de subtis contradições – o morto tornado vivo, o novo tornado antigo, o precioso tornado funcional – estabelecendo-se uma ordem poética das coisas.

Situada num local ideal, barroco, que lhe revela as leituras, a exposição padece, no entanto, de uma discreta apresentação, podendo passar despercebida se não soubermos previamente o local onde está situada, faltando-lhe uma maior afirmação no seu papel de exposição temporária. Por outro lado, isto possibilita-lhe uma maior, e mais interessante, imersão no espaço expositivo (estratégia que, de forma pertinente, tem vindo a ser habitual no Museu Nacional do Azulejo), mas, ainda assim, penso que beneficiaria de uma melhor indicação no espaço do museu (visto encontrar-se distante das restantes exposições temporárias) a quem tem o único propósito de a vir ali visitar.

Apresenta-se pequena, preciosa, um ponto no tamanho da restante coleção, mas revela-se a quem lhe conceder tempo. Isso é o mais importante. Última contradição: ainda que nos possa, inicialmente, assustar, convida-nos, depois, a contemplar.

Mare Ossus Tellus, de Teresa Segurado Pavão, está em exposição no Museu Nacional do Azulejo até ao dia 2 de outubro.

Miguel Pinto (Lisboa, 2000) frequentou a licenciatura em História da Arte pela NOVA/FCSH, através da qual veio a realizar um estágio no Museu Nacional do Azulejo. Participou no projeto de investigação VESTE – Vestir a corte: traje, género e identidade(s), alojado pelo Centro de Humanidades da mesma instituição. Criou e gere o projeto a Parte da Arte, que pretende divulgar e investigar o panorama artístico em Portugal através de vídeo-ensaios explicativos.

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