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Fúria pela vida: obras da coleção FLAD no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas

Quem descobre pela primeira vez a poética da língua portuguesa, pode eventualmente ficar surpreendido pela quantidade de referências à natureza que nela existe em todos os tipos de obras, músicas e textos, que trazem consigo imagens de céus infinitos, cores e paisagens, sol, florestas e ondas.

A ligação entre natureza e cultura é, provavelmente, a mais antiga da história da representação: ela vem antes de tudo, antes de todos os estilos e escolas, pois entrelaça-se com a vida dos homens e da comunidade.

Representar a natureza, descrevê-la, imaginá-la, é o primeiro passo para conhecer o mundo à nossa volta; esse mundo tão vasto, que deixa boquiaberto qualquer visitante –  um território pleno de vitalidade e de elementos extraordinários.

Festa. Fúria. Femina., um conjunto de obras provenientes da coleção da Fundação Luso-Americana FLAD – até 4 de setembro em exposição no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, na Ribeira Grande, em São Miguel – procura precisamente um reconhecimento dos temas da natureza, do corpo e da feminilidade, assim como da identidade e da memória, na arte portuguesa, quer visual quer plástica, do último século.

A Fundação Luso-Americana nasceu em 1986 e a coleção começou a ser formada poucos meses depois por mérito de Manuel Castro Caldas, seguido de Manuel Costa Cabral e Rui Sanches, até chegar a ter um conjunto de quase 800 obras em 2003, altura em que foram suspensas as aquisições, que apenas se viriam a reiniciar em 2019.

Hoje, declaram os curadores António Pinto Ribeiro e Sandra Vieira Jürgens, “é preciso mostrar a coleção tendo em conta as mutações que ocorreram não somente na composição cultural em Portugal, mas no mundo inteiro”.

Destacam-se, por conseguinte, os artistas que fazem da escrita e da pintura uma mistura exemplar para falar do mundo atual, para relembrar o passado e enfatizar mensagens sociais: Vasco Araújo, por exemplo, imprime sobre um fundo de palmeiras tropicais os versos dos livros Yaka, de Pepetela, e Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo.

A obra intitula-se É nos sonhos que tudo começa, 2014, e através desta imagem ficamos com uma perceção de diversos tipos de abusos, tanto atuais como passados, numa representação cujo fundo paradisíaco não consegue mascarar racismos e excessos.

De facto, a única pessoa que parecia ver a realidade – no Caderno de memórias de Isabela – era uma menina, filha de colonos, cuja sensibilidade traduzia o que o seu olhar testemunhava perante o que acontecia na vida “normal” dos brancos, e nas relações deles com os ex-escravos, durante o fim da época colonial.

De grande beleza é o diálogo entre a obra de Margarida Lagarto, um grande desenho com mais de seis metros de comprimento feito com carvão sobre papel, a falar de uma natureza que vai para além do branco, relacionado com as pequenas casas de calcário e barro cozido de Manuel Rosa: um verdadeiro acervo de imaginários atlânticos, a suster uma ideia de povoação, de tradição e de literatura –  acorre à nossa imaginação a casa à beira-mar de Crisóstomo, um dos protagonistas do livro O filho de mil homens de Valter Hugo Mãe.

Há que não ignorar a continuação da exposição no espaço das celas. Aqui, Festa. Fúria. Femina. ganha uma dimensão ainda mais íntima, de pura descoberta: a sombra da natureza desaparecida do mundo dos nativos projeta-se no âmago de um pequeno trabalho de Carla Cabanas, cujo céu é pintado de ouro enquanto uma figura da família se ausenta. Aonde foi? E porquê?

Mais ainda: a belíssima peça em chumbo de Pedro Cabrita Reis (Pudor/ Desejo/ Esquecimento, 1988) junto às paisagens de Alexandre Conefrey e de Gabriela Albergaria (Vale dos Fetos, 2020).

Por fim, a encerrar esta exposição simultaneamente intensa, doce e palpitante está a grande Paula Rego, com um acrílico sobre papel e tela assinado em 1981: aqui, animais e criaturas híbridas tomam conta do quadro e da nossa visão. A conclusão, se ainda fosse preciso enfatizá-lo, é a esperança de uma verdadeira igualdade entre os seres do mundo.

Além de Festa. Fúria. Femina. realiza-se também a exposição Chave na serradura, resultado do curso de artes visuais proporcionado durante oito semanas a nove jovens artistas, que a projetaram e produziram em conjunto com artistas e teóricos, como Gabriela Albergaria, Ana Mendes e Rómulo Conceição, entre outros.

Até 4 de setembro é possível descobrir as inspirações que acompanham os trabalhos de Catarina Lopes Vicente, Gabriel Siams, Inês Carvalho, Joana Hintze, João Amado, Juliana Matsumura, Mariana Malheiro, Rita Senra e Vasco Marum: pinturas, esculturas, projeções, desenhos que mantêm com os Mestres da coleção um diálogo sobre o ideal comum a desenvolver para uma sociedade mais igualitária em termos de direitos e deveres, assim como um olhar perscrutador sobre a tutela do meio ambiente e das raízes comuns a todos nós. Para abrir a porta do amanhã.

Festa. Fúria. Femina com curadoria de António Pinto Ribeiro e Sandra Vieira Jürgens, e chave na serradura, estão patentes até ao dia 4 de setembro no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, na Ribeira Grande, na ilha de São Miguel, nos Açores.

Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte. Atualmente é Diretor Responsável da revista italiana exibart.com e colaborador para o semanário D La Repubblica. Além de jornalista, fez a edição e a curadoria de vários livros, entre os quais Un Musée après, do fotógrafo Luca Gilli, Vanilla Edizioni, 2018; Francesca Alinovi (com Veronica Santi), pela editora Postmedia books, 2019; Prisa Mata. Diario Marocchino, editado por Sartoria Editoriale, 2020. O último livro publicado foi L'involuzione del pensiero libero, 2021, também por Postmedia books. Foi curador das exposições Marcella Vanzo. To wake up the living, to wake up the dead, na Fundação Berengo, Veneza, 2019; Luca Gilli, Di-stanze, Museo Diocesano, Milão, 2018; Aldo Runfola, Galeria Michela Rizzo, Veneza, 2018, e co-curador da primeira edição de BienNoLo, a bienal das periferias, 2019, em Milão. Professor convidado em várias Academias das Belas Artes e cursos especializados. Vive e trabalha em Milão, Itália.

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