MACE – 15 anos
42oC, mas o sol e o calor não comprometeram a festa dos 15 anos do Museu de Arte Contemporânea de Elvas (MACE), naquela que foi também a celebração do colecionismo privado, do associativismo e dos projetos colaborativos.
E colaboração é, de facto, a palavra-chave deste evento, que reuniu artistas, coleções e instituições de arte de Norte a Sul do país, para se concentrarem num território periférico, mas não menos importante para a arte contemporânea portuguesa, mercê da iniciativa que o Município de Elvas e o colecionador António Cachola inauguraram em 2007.
Já então a Coleção de António Cachola era tida como uma das mais coerentes coleções em Portugal, com obras a partir da década de 1980 adiante, e vários dos artistas que viriam a colocar Portugal no mapa da arte nacional e internacional. Significa isto, e como Delfim Sardo sublinhou em diversas ocasiões, que esta é uma coleção da democracia portuguesa e, portanto, o seu valor não será apenas artístico, mas também histórico e simbólico.
Celebrar os 15 anos do museu que acolhe em depósito esta coleção é medir-lhe o pulso e perceber a sua evolução. Pelo caminho, ausculta-se o desenvolvimento da cena artística portuguesa nos últimos anos, as tendências, os nomes mais sonantes, os jovens perfilados para uma carreira futura estável, as correntes mais ou menos explícitas, mais ou menos implícitas.
Ana Cristina Cachola, curadora, organizadora do evento e filha de António Cachola, sintetiza numa única interrogação o fio condutor e narrativo do evento: “Quem nos salva?” Quem nos salva nesta busca incessante por um lugar digno no mundo? Quem nos salva no esboroamento das velhas práticas dialógicas do consenso? Quem nos salva perante o ódio crescente, a falta de empatia, o terror? Nesta perspetiva, é um desafio diferente daquele que foi lançado há cinco, por ocasião dos 10 anos do MACE, não tinham ainda estalado a pandemia nem a guerra na Europa – acontecimentos que perpassam o mote lançado pela curadora, mas também o slogan, “Aqui somos rede”.
Recorrendo a algumas das mais recentes aquisições por António Cachola, Quem nos salva? é uma exposição crítica, tanto do ponto de vista da urgência dos temas que aborda, como do ponto de vista da indagação consciente e analítica. Esta é, afinal, uma coleção vincadamente contemporânea, com artistas jovens que investigam, criticam, evocam e atualizam as políticas e os grandes assuntos dos seus tempos. Mané Pacheco conduz-nos por um ambiente azul de combatividade e humor; Diana Policarpo narra o cruzamento entre espécies e a simbiose entre o reino vegetal e o corpo humano feminino; o candelabro em tampões OB de Joana Vasconcelos é novamente exposto, como se o tempo não tivesse passado por ele; Susanne Themlitz invoca a estranheza e a ironia com as suas figuras antropomórficas; Alice Geirinhas gere a emoção, a mágoa, o luto e o conflito histórico cada vez que a ditadura é relembrada; Gabriel Abrantes traça uma parábola transformista e identitária; Alice dos Reis trabalha os limites cósmicos ou extrativistas da indústria de reprodução feminina; João Pedro Vale + Nuno Alexandre Ferreira reúnem os ícones do ativismo gay; Isabel Cordovil dá um radiante salto de liberdade; etc.
Quem nos salva? convida, portanto, a uma meditação demorada e abre-se a uma dimensão que suspende o Tempo para o olhar de frente. Em alternativa, é um olhar sobre todos os Tempos, quando tudo o que nos rodeia parece falhar e sucumbir ao desnorte e ao desespero. Não é, todavia, um cenário apocalíptico. Há esperança, porque é na arte, como relembra a curadora, que reside a salvação.
Simultaneamente, é pedido a mais 24 instituições, coleções, organizações e coletivos que olhem para este Tempo, tão conturbado quanto fértil de desafios, tão eterno quanto atemporal.
Do ponto de vista institucional, as exposições que visam as coleções PLMJ, AA, Fundação Carmona e Costa, Norlinda e José Lima, MACAM, Figueiredo Ribeiro, João Luís Traça, Marin.Gaspar, Peter Meeker/Casa São Roque, Fundação Leal Rios, Maria e Armando Cabral (Rialto 6), José Carlos Santana Pinto, MEIAC e Quetzal Art Center propuseram-se a debater discursos que passam pela ficção, pelas geografias globais, pelo corpo e pela espiritualidade, deixando, por vezes, que os locais de instalação das coleções se assumam e dialoguem de forma franca com as obras, como é o caso das exposições das coleções PLMJ, AA, Peter Meeker/Casa São Roque ou Fundação Leal Rios.
No que aos projetos ou plataformas independentes diz respeito, a eles coube, sobretudo, as propostas mais ousadas, abrindo, deste modo, espaço à desformatação, à performance e à experimentação. São disso exemplo o projeto Appleton (com Susana Mendes Silva e Joana Patrão, na Cisterna), Supermala (com Bruno Bogarim e Lara Dâmaso, na Sociedade de Instrução e Recreio, na Escola da Alcáçova) e Estrela Decadente (com Alice Geirinhas, Ana Cristina Cachola/Xavier Almeida e Ana Matilde Sousa), mas também Spirit Shop, Quéréla, O Armário, ZDB, Uma Certa Falta de Coerência, Uppercut e DuplaCena/VEM.
Este é um relato breve de uma festa cuja programação excedeu o meio em que decorreu e mais não poderá ser por limitações de formato. Muitos artistas ficaram por nomear. Curadores e programadores também. Mas esta é uma festa de coleções e colecionadores, e a eles cabe natural destaque.
Ainda assim, fica um apanhado geral de uma proposta que se fez de uma ambição mais nacional que regional (em tudo semelhante à de uma bienal) e que, por isso, será, certamente, um dos mais marcantes momentos expositivos de 2022.
Ganha a cidade de Elvas em projeção e em vida, com o património e as associações e espaços locais ativados em prol da arte, que renascem da letargia do esquecimento para ganharem novo fôlego e potencial, entre o sagrado e o profano, o popular e o erudito, o individual e o coletivo, o quotidiano mecânico e a arte.
Surge aqui, uma vez mais, a oportunidade de formar públicos, educar através da arte e estimular uma franja da população que durante décadas viveu apartada da arte e, mais ainda, da arte contemporânea. 15 anos de MACE é, deste modo, um investimento político, de coesão e desenvolvimento das capacidades culturais, críticas e conceptuais das populações do interior alentejano.
15 Anos de MACE – Aqui somos rede fica em exposição até 15 de agosto, em 25 espaços da cidade de Elvas e conta com cerca de 200 artistas portugueses e estrangeiros.