documenta 15, um palco-anti palco
A 15ª edição da documenta, que decorre em Kassel, na Alemanha, entre 18 de junho e 25 de setembro deste ano, tem como grande foco não um evento, um tema ou um conceito, mas um modelo de trabalho a que foi dado o nome de ‘lumbung’, uma palavra indonésia que descreve um celeiro comunitário. ‘Lumbung’ é no contexto da documenta 15 uma ideia de organização coletiva e partilha, tendo como objetivo principal estabelecer uma plataforma cooperativa a nível global, que continue a existir mesmo depois da exposição terminar. A ideia foi introduzida pelo coletivo ruangrupa, baseado em Jakarta, convidado a fazer curadoria desta edição.
Essa ideia não se reflete, contudo, no primeiro impacto. Com mais de 30 espaços diferentes espalhados por toda a cidade de Kassel e dezenas de milhares de visitantes diários que, não fosse a ocasião, não a poriam nas suas rotas, parece difícil conceber à partida que um dos grandes objetivos da documenta 15 passa por reforçar o caráter local e coletivo da arte. A primeira impressão, olhando para o mapa, é aliás a de que a edição deste ano tem uma escala monumental, com salas, coletivos e artistas intermináveis. E não é difícil perceber também desde logo que são necessários vários dias para ir a todos os espaços da exposição com o tempo que pedem.
Não será desapropriado afirmar que a monumentalidade é o primeiro grande desafio assumindo pelo coletivo ruangrupa. E que tem, para além da demora associada, várias consequências práticas: primeiro, causar no visitante a impressão de, na maior parte do tempo, não encontrar o que espera; depois, a ideia que o espaço funciona mais como uma convocatória para uma discussão do que para a amostra de qualquer coisa, como se nos atraísse para ali nos prender e os trabalhos expostos fossem mais um pretexto do que um fim. O que não é surpreendente, uma vez que a revisão do próprio conceito de ‘arte’ é também uma das discussões a visitar.
Mesmo tendo em conta esse quadro, há vários trabalhos que se destacam numa linha mais convencional. Manifold, de Erick Beltrán, por exemplo, uma instalação multimédia resultante de um projeto conduzido com o apoio de membros da Universidade de Kassel e que inclui, entre outros elementos, uma série de entrevistas aos habitantes dessa cidade nas quais são questionados acerca da imagem que lhes surge instintivamente quando pensam em poder. Disruptiva e heterogénea, a instalação, que junta vídeo e esquemas de ideias em painéis, está espalhada por várias salas do Museu de Cultura Sepulcral, fundindo-se com as salas da exposição permanente habitadas por lajes, jazigos e caixões.
Num registo também algo sombrio, Saodat Ismailova ocupa as caves do Fridericianum com Chilltan, um projeto que se lança na procura de traços culturais perdidos na história moderna de países como o Uzbequistão, o Cazaquistão ou o Tajiquistão. Misto de intervenção no espaço, filme e performance, Ismailova estende a imagem projetada ao próprio espaço através da duplicação física de elementos do filme, sejam eles carpetes uzbeques, pedaços de seda ou até a própria luz da sala. O filme é no fundo uma réplica desse lugar indefinido, entre duas dimensões, com planos longos, nebulosos, em que a paisagem se mistura com as mulheres que a pontuam numa procura que vai do passado islâmico à herança animista da região.
Este lado mais límbico não é o mais presente, ainda assim. Correspondendo ao objetivo de disseminar informação e conhecimento, o registo predominante na documenta 15 é, pelo contrário, fundamentalmente direto, realista. A informação tem um grande peso, sendo que na maior parte dos trabalhos apresentados os elementos históricos surgem não apenas como elemento dos trabalhos, mas como o seu próprio corpo, como dimensão total. Por outras palavras, numa certa proximidade documental, com o mínimo de filtro possível. Tanto que não é de estranhar a recorrência de documentários e arquivos. Só no Fridericianum há três na mesma sala: The Black Archive, Asia Art Archive e Archives des luttes des femmes en Algérie, na antecâmara de uma outra sala onde são projetados uma série de filmes acerca da história recente do Iraque, autoria do coletivo Sada (regroup).
O registo não é surpreendente. Desde o início, a exposição foi vista pelo coletivo ruangrupa como uma possibilidade de dar espaço e protagonismo a metodologias e práticas artísticas diferentes, recaindo a importância dessas mais sobre o seu contexto do que sobre o seu produto. Nas palavras do coletivo, “há formas e práticas diferentes de produzir (obras de) arte. Estas práticas não são (ainda) visíveis, uma vez que não se enquadram no modelo no modelo existente do(s) mundo(s) da arte global. A documenta 15 é uma tentativa de fazer colidir estas diferentes realidades, mostrando que há outras formas possíveis.”[1] E foi precisamente por essa razão que não houve, por exemplo, qualquer comissão de trabalhos. Os coletivos convidados foram desafiados apenas a continuarem o trabalho que estavam a fazer no contexto em que estavam inseridos e a trazê-los depois para Kassel.
O princípio organizacional e curatorial da documenta 15, que é também uma posição crítica, parece então ser simples: na medida em que a prática artística tem uma função, um papel útil na procura de soluções para problemas práticos dentro das comunidades, o espaço expositivo deve ser utilizado para possibilitar o crescimento desse elemento funcional, o alastramento da discussão. Noutras palavras, a prática. O papel do observador também parece tornar-se obsoleto algures nesse processo.
A sala onde está o coletivo Gudskul é talvez o melhor exemplo dessa intenção: um espaço comunitário em constante mutação numa sala de museu, com cadeiras, mesas, materiais, sofás e alguns vídeos onde o coletivo discute a sua prática. Aqui acontecem workshops e discussões, mas o mais interessante talvez seja observar os visitantes nas horas sem eventos, estupefactos à procura de alguma coisa que possam ver, fotografar, contemplar, como se não encontrassem a obra. Alguns auscultam os móveis, outros olham apenas em redor. Muitos discutem, de facto. “Isto não é arte”, pôde ouvir-se algumas vezes.
Propensa à crítica, a proposta curatorial da documenta 15 traz inegavelmente vários pontos interessantes. Desde logo, a ideia de que a arte, por ser uma prática, não deve ser observada ou contemplada, mas antes experienciada e discutida. Depois, uma discussão conceptual acerca da possibilidade de uma dimensão artística mais ampla, pensada a partir de outras categorias. A liberdade expressiva em contextos adversos, o espaço criativo que a prática artística permite, a possibilidade de alheamento, por exemplo. Como nas salas reservadas à Trampoline House, uma associação dinamarquesa de apoio a exilados e migrantes em condições adversas no país. Os relatos de várias pessoas que recorrem a essa associação, presentes em vídeo, falam disso mesmo, da liberdade que sentem quando, na presença do papel, das tintas, das câmaras, podem por momentos esboçar alguma autonomia. Há ainda uma noção interessante do conceito de autoria, com muitos coletivos a não distinguirem autores individualmente.
Por outro lado, é legítimo questionar se o princípio de “keep doing what you’re doing” e a insistência no contexto da prática artística como objeto principal, sem atentar ao resultado, não acaba por ser também redutora. A posição do coletivo ruangrupa é clara: “a arte tem as suas raízes na vida. Os objectos e métodos daí decorrentes ajudam a pensar acerca de problemas práticos e a encontrar soluções úteis para a comunidade. Desta forma é impossível separar a arte e a vida, e não faz por isso sentido expor objectos em Kassel sem encontrar traduções dos processos que lhes deram origem”[2]. Mas um dos pontos distintivos da prática artística não é também a possibilidade de o produto ultrapassar a dimensão do próprio processo? No mesmo sentido, não é delimitar a prática artística ao seu espaço, não como um elemento, mas como uma baliza, uma forma de redução?
Podemos pensar no exemplo do coletivo Wajukuu Art Project, que ocupou a entrada da documenta Halle, um dos espaços mais visitados da exposição, com uma instalação arquitetural. Entre paredes cobertas de chapa e pinturas fixas nessa mesma chapa, horizonte onde quase flutuam três esculturas feitas cama por corpos suspensos, facas e correias em luz baixa, há um vídeo em que, sob uma música de fundo motivacional, os artistas falam sobre a sua história de vida. A ideia, seguindo as linhas orientadoras da exposição, seria demonstrar que aquele trabalho específico vem igualmente de um contexto específico. Mas essa inclusão não torna a biografia o objeto de todo o espaço, e não apenas um elemento? E, se sim, então o trabalho é só ilustração?
A mesma questão poderia ser feita acerca do trabalho que Atis Rezistans apresentam na igreja de St. Kunigundis. Misto de esculturas, vídeo-instalação e som, o coletivo Haitiano despiu a igreja – que interrompeu o funcionamento para a exposição – da sua decoração habitual e repovoou-a com elementos igualmente religiosos, intimamente ligados à cultura voodoo. Entre cadáveres eretos feitos a partir de materiais reciclados como pneus, ossadas, ferros e molas, e altares ocupados por jarras transparentes onde flutuam objetos recolhidos nos arredores da igreja, há um ambiente festivo, metálico, quente. E a sensação – reforçada por alguns dos vídeos documentais – de que os artistas envolvidos conseguiriam fazer sorrir qualquer pedaço de lixo. Mas é essa capacidade de trabalhar materiais desperdiçados suficiente para explicar como se constrói este lugar?
Além destas questões, há ainda o problema da escala. O registo altamente discursivo da exposição, o princípio de disseminação de informação, cria muitas vezes um conflito visual e material que torna praticamente impossível ligar essa mesma informação, especialmente quando há trabalhos de vários coletivos na mesma sala. É certo que haverá pontos comuns entre as práticas dos coletivos, em particular no que às suas condições de trabalho diz respeito. Mas o texto subjaz apenas à sala, não a preenche – e muitas vezes sobra disso apenas uma mescla de referências visuais e dimensões artísticas diferentes, em colisão.
No final, fica a ideia de que a documenta 15 é acima de tudo um lugar de propostas, certamente de discussão, mas também a sensação de que a escala é porventura desapropriada e até contraproducente. É importante lembrar, a esse respeito, que a documenta tem um contexto, que tem lugar no centro da Europa e que, no fim de contas, continua a ser um dos eventos de arte com mais financiamento, mais visibilidade e mais expressão a nível mundial. A tarefa de transformá-la seria por isso sempre hercúlea – talvez até impossível -, uma vez que implica, simultaneamente, apropriar-se de um palco global e seguir as suas regras para instaurar a escala oposta. Talvez esses dois mundos não sejam compatíveis. Ou talvez fosse necessário tentar. Como em todas as documentas, só mais tarde viremos a saber.
[1] tradução livre. “There are different ways and practices of producing art (works). These practices are not (yet) visible, as they do not fit the existing model of the global art world(s). documenta fifteen is an attempt to clash these different realities against each other, showing that different ways are possible.” in “How to do things differently”, documenta fifteen Handbook
[2] Tradução livre. “Art is rooted in life. The ensuing objects and methods help in thinking through the issues at hand and in finding solutions that are useful to the community. In this way it is impossible to separate art and life, and it is meaningless to exhibit the objects in Kassel without finding translations of the processes that give rise to them.” in “Keep on doing what you’re doing”, documenta fifteen Handbook