Migrantes são bem-vindos, de Gabriel Chaile
A comida é a mais maleável e substancial matéria para construir uma comunidade. A refeição é um momento de partilha, um prolongamento do tempo, um encurtamento do espaço. Entre alimentos, há suspiros, há confidências, há anedotas e preocupações repartidas. É um momento íntimo, que marca e quebra a banalidade dos dias e das horas, o fardo do trabalho, a angústia do quotidiano. É um lenitivo para as agruras dos tempos – ou, em alternativa, uma conspiração permanente contra os problemas do mundo. E porque o nosso tempo tornou natural a atomização das sociedades, a entropia, a extinção dos laços emocionais, memoriais e patrimoniais, a refeição em família e entre amigos é um ato profundamente político. Não será em vão, portanto, que a arte contemporânea tenha tido as suas experiências com a comida e respetivos tropos: Dinner Party, de Judy Chicago; a estética relacional de Rirkrit Tiravanija; ou antes, ainda, o projeto social e comunitário levado a cabo pelo restaurante nova-iorquino FOOD, na década de 1970, criado por Carol Goodden, Tina Girouard e Gordon Matta-Clark.
Em Migrantes são bem-vindos, Gabriel Chaile retoma esse poder agregador da comida, para o converter, depois, num importante instrumento político e cultural na construção e consolidação de comunidades, mais ou menos duradouras, mais ou menos improvisadas, mais ou menos transitórias.
Uma constelação de fotografias impressas recorda as sobrevivências da arte pré-colombiana, faz uma historiografia descomprometida por alguns momentos relevantes e chocantes da História recente, passeia pelas produções culturais antigas e contemporâneas e liga-os a memórias e períodos pessoais que Chaile entendeu assinalar; perto, sobre a mesa, uma série de livros enciclopédicos sobre cerâmica; um rolo de papel, pronto a desenrolar, anuncia uma atividade prolongada ao longo do projeto; e os fornos, de terracota, esculpidos e animados para juntar públicos, preparam iguarias sul-americanas e dão som a esta performance que não tem guião, não segue preceitos, antes vive de uma ação descomprometida, convivial, dialogante, nómada, entre amigos, migrantes, conhecidos e desconhecidos. Tudo isto joga a favor de um ambiente vagamente familiar, informal e apropriável: uma cozinha, um lar, uma habitação pejada de cheiros, calor e conforto.
De facto, toda a herança cultural que Chaile incute na sua obra tem essa verve da ação, do fogo, da chama que transforma os alimentos; não são objetos ou esculturas cuja finalidade serve a dos museus-mausoléus de Adorno. As esculturas têm forma, têm uma dimensão estética e plástica, mas também têm uma extensão utilitária – a mesma que os artesãos de outrora gravavam nos seus fornos, com motivos estilizados, gravações várias e figuras geométricas, em que “o fazer” era a celebração da natureza e da vida. Deste modo, os fornos itinerantes que vemos em El Recolector estão montados sobre rodas e uma coluna de som, com talheres e toalhas de mesa prontos a usar. Pelo caminho, Chaile vai colecionando histórias e aproximando e recebendo pessoas segundo as regras da boa hospitalidade. [Daí a afixação de uma imagem do filme de animação O Castelo Andante (2004), de Hayao Miyazaki, na parede, mais concretamente no E. F. C. A. T. A. (estudio para el funcionamiento de las cosas a través del Arte).]
Ou seja, Migrantes são bem-vindos reveste-se de uma processualidade cujo início coincidiu com a inauguração da exposição, para a qual o artista convidou o seu amigo Aaron Jassiel Herrera Villarreal, um chef mexicano, a cozinhar tacos feitos durante a festa – porque foi, em boa verdade, uma festa a que se assistiu, um já quase extinto happening que misturou arte e vida.
O património carrega-se no estômago saciado, no sabor que perdura noite fora na boca e funda memórias, lembranças, eventualmente reavivadas por uma comida semelhante no futuro. É esse, no fundo, o legado antropológico que Gabriel Chaile aqui nos apresenta.
Migrantes são bem-vindos, de Gabriel Chaile, está patente na Kunsthalle Lissabon, em Lisboa, até 3 de setembro.